SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dois meses após a declaração de emergência em saúde pública e a chegada de equipes da Força Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde) ao território yanomami, em Roraima, a médica Ana Caroline Marques afirma que “a sensação de impotência diminuiu”. Agora, há mais medicamentos e alimentos e, principalmente, reconhecimento da sociedade, ela diz.
“A população yanomami está sendo vista. Antes, eu falava que era um povo esquecido e que parecia não existir para o restante da sociedade. Hoje podemos gritar e exigir condições mínimas de trabalho, clamar por melhorias”, avalia.
Indígena do povo tupiniquim, no Espírito Santo, a médica conta que sempre teve vontade de trabalhar junto a povos originários e participou de programas de extensão e estágios com esse intuito enquanto estava na graduação, cursada na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
“Eu queria trabalhar onde realmente fosse necessário, onde eu soubesse que o cuidado faria a diferença na vida de alguém”, afirma. E a realidade que encontrou após participar da seleção do Programa Médicos pelo Brasil e assumir o cargo no polo de Auaris, em maio de 2022, foi muito diferente de tudo que já tinha vivenciado.
Havia muitos pacientes com desnutrição, desidratação, lesões de pele, pneumonia, diarreia e verminoses. “É desesperador, porque você se sente impotente e acha que tudo vai ter um desfecho negativo. É o desafio de tentar fazer o melhor para salvar uma vida, e ao mesmo tempo, saber que seus recursos são limitados”, diz, com a voz embargada.
Marques relata que faltavam medicamentos básicos, atadura, esparadrapo, e que a equipe chegou a realizar um parto com luvas de borracha, daquelas utilizadas em limpeza, porque não havia luva descartável.
Para minimizar o problema, ela começou a pedir doações e a adquirir medicação por conta própria para levar a cada rotina, como é chamado o esquema de viagem.
Os médicos têm 15 dias de folga e 15 dias no Território Indígena Yanomami. Dois dias antes de viajarem de Boa Vista para os polos, eles começam a organizar a cesta de mantimentos e medicamentos. Cada polo tem uma lista de alimentos que podem ser levados, de acordo com a disponibilidade de geladeiras. Muitas unidades não têm energia elétrica, e o que é obtido por meio das placas solares é utilizado para refrigeração de vacinas.
Os funcionários entregam os alimentos e suas bagagens para pesagem, e esse material vai em um primeiro voo com as medicações e os insumos. Depois é realizado um segundo voo pela empresa de táxi aéreo contratada, este com a equipe.
Quando percebeu que faltavam itens básicos, a médica passou a levar antibióticos, antitérmicos, analgésicos e vermífugos por conta própria. “Tinha época em que estávamos com o paciente com febre e, se eu não tivesse levado dipirona, teríamos apenas a opção de resfriamento, dar banho em água fria para ver se diminuía a temperatura”, diz.
“Sempre fui muito ‘pidona’, saía pedindo doação para os colegas e levava. Cheguei a evitar uma morte materna porque havia levado medicação para controle de hemorragia pós-parto”, recorda.
Houve um momento, contudo, em que não foi possível minimizar a falta de recursos. Quando ocorreu o surto de malária, que vitimou muitos indígenas e deixou graves sequelas, não havia medicação nem testes rápidos para o diagnóstico da doença.
A capacidade para exames é um dos gargalos no atendimento. O teste para malária é o único realizado na própria região. Também há coleta de material para o diagnóstico de tuberculose, geralmente realizada um dia antes de uma viagem, para o envio para análise em Boa Vista. De resto, tudo precisa ser realizado na capital, pelo menos até a estruturação do Centro de Referência de Saúde Indígena no Polo Base de Surucucu, prevista para o fim de abril.
Outro desafio, este em transição, é a quantidade de profissionais. Marques conta que são oito médicos contratados, quatro em cada quinzena, para atender todo o território.
“Vivenciei três cenários diferentes na minha última quinzena. Os novos médicos ainda estavam em processo de contratação, recebendo orientações sobre o funcionamento das unidades de saúde indígenas, e tive contato com duas equipes de voluntários da Força Nacional do SUS”, diz.
Quando chegou ao polo de Surucucu, Marques estava acompanhada de um enfermeiro, três técnicos de enfermagem e um agente de controle de endemias e havia também uma fisioterapeuta e uma nutricionista no polo. “Nós éramos insuficientes, porque para dar assistência às comunidades da região a equipe muitas vezes tem de se deslocar, caminhar por horas ou ir de helicóptero”, comenta a médica.
A equipe da Força Nacional aliviou a situação, mas, quando os voluntários foram embora, dois dias depois, Marques foi acionada para vários resgates e a unidade de saúde ficou desfalcada. O cenário só voltou a melhorar no fim da quinzena, com a chegada de um novo grupo.
“A presença de profissionais precisa ser mais contínua. É algo que está caminhando para acontecer”, acredita.
Os recém-chegados terão à sua disposição luvas de látex, vermífugos, sulfato ferroso para os pacientes com anemia, antibióticos, soro fisiológico e analgésicos, além de suplementos vitamínicos e nutricionais para os pacientes desnutridos –não apenas arroz, flocos de milho, leite e biscoito, como meses atrás.
“Com a distribuição de cestas básicas para as comunidades, observamos que o estado nutricional em geral está melhorando”, pontua. “Ainda vamos atender casos de desnutrição, de diarreia, mas com recursos.”