Brasileiros são censurados em Portugal por obra que denuncia escravidão

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Os artistas brasileiros Dori Nigro e Paulo Pinto tiveram uma obra censurada em uma exposição que integra a Bienal de Fotografia do Porto. A instalação “Adoçar a Alma para o Inferno 3” tinha alusões à ligação do conde de Ferreira, um famoso benemérito português, ao tráfico transatlântico de pessoas escravizadas.

A mostra liderada pela dupla estava instalada justamente em um hospital batizado em homenagem ao conde, que morreu sem descendentes diretos e destinou a fortuna obtida com o comércio, tanto de mercadorias quanto de seres humanos, a diversos projetos sociais e educacionais.

A obra que foi alvo de censura explorava a contradição entre a filantropia como subproduto da exploração. Ainda que não citasse nominalmente Ferreira, uma das áreas da instalação continha espelhos com reflexões sobre a vida do comerciante.

“Quantas pessoas escravizadas valem um hospital psiquiátrico? Quantas pessoas escravizadas valem 120 escolas? Quantas pessoas escravizadas valem os títulos de nobre e benfeitor?”, questionam os artistas em um dos objetos da instalação.

A ação de censura aconteceu em 19 de maio, dia da inauguração da obra. O administrador executivo do Centro Hospitalar do Conde de Ferreira, acompanhado pelo diretor clínico da instituição, foi até ao local e exigiu a retirada das peças com menções ao passado escravagista.

Diante da recusa por parte dos artistas, os responsáveis determinaram que a parte da exposição que continha as referências fosse fechada. Ainda com os convidados presentes, um funcionário lacrou a porta de acesso com pedaços de madeira.

Dias depois, o hospital removeu por conta própria, e sem a autorização dos autores, as partes polêmicas da obra. “Foi uma violação em cima de uma violação”, diz Pinto.

Os artistas se dizem surpresos e perplexos com a censura. “Não teve negociação. Era para tirarmos as obras ou encerrariam a sala. Tudo aconteceu com o público circulando”, afirma Pinto. “Nós ficamos em choque porque não imaginamos o que viria em seguida. Estávamos falando com o público quando, de repente, passa um senhor com uma furadeira para colocar uma tarja de madeira e parafusos para tapar a porta.”

Radicado em Portugal desde 2013, o casal tem um histórico de trabalhos que abordam o passado colonial e as memórias de seus antepassados. Eles afirmam ainda que deixaram claro que iriam refletir sobre o tema e afirmam que os responsáveis pelo hospital puderam acompanhar o processo de montagem.

A instalação estava inserida na exposição “Vento (A)mar”, cuja própria sinopse já menciona as reflexões sobre colonialismo e ancestralidade. Nigro diz que a dupla já esperava provocar algum tipo de incômodo com a exposição, mas imaginava que haveria um debate construtivo.

“Esperávamos, sim, uma reação, mas como a que acontece em muitas das nossas performances. As pessoas discutem, debatem. Ou seja, a arte provoca um diálogo que é interessante. Esperávamos que esse diálogo transformador também fosse possível. É isso que nós queremos sempre: olhar para o nosso passado para não repeti-lo”, ele afirma. “O que a gente não esperava era essa dupla violência à luz do dia. Uma censura em pleno século 21.”

Ainda no âmbito da bienal, Nigro e Pinto protagonizarão a performance “Pin Dor Ama: Primeira Lição”, que aborda questões como o colonialismo, o racismo e a homofobia. A apresentação, marcada para 22 de junho, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, terá ainda debates e reflexões sobre o tema e os últimos episódios.

Em nota, a Bienal de Fotografia do Porto condenou duramente a posição dos representantes do hospital e da Misericórdia do Porto. “Este ato de censura à liberdade de expressão fere um direito constitucional inalienável e atinge não só o conjunto da obra artística ‘Adoçar a Alma para o Inferno 3’, como toda a equipe da exposição e da Bienal, toda a classe artística e todos que defendem a democracia”.

A organização pediu ainda a reabertura do espaço e a exposição ao público, na íntegra, da obra da dupla brasileira. A Santa Casa de Misericórdia do Porto, que tutela o hospital Conde de Ferreira, afirmou em nota que “lamenta não poder atender” a solicitação de reabertura e afirma que “não há condições psicológicas para a concretização do pedido”.

“A comunidade de saúde, doentes, trabalhadores e suas famílias se sentem afetados pela expressão utilizada quando se referem a ‘quantas pessoas escravizadas valem um hospital psiquiátrico?’

Dizendo-se uma instituição de espírito inovador e tolerante, a Misericórdia do Porto afirmou ainda que “não terá dificuldade, na forma adequada, de discutir a sua história, os seus comportamentos, os seus benfeitores”.

Questionado pela reportagem, o ministério da Cultura de Portugal, que apoia financeiramente a bienal, limitou-se a afirmar que “não interfere de forma alguma nas escolhas dos locais e dos conteúdos artísticos e repudia veemente qualquer ato de censura contra obras de natureza artística”.

Nascido em 1782, no Porto, Joaquim Ferreira dos Santos fez fortuna principalmente como comerciante. Vindo de uma família humilde, conquistou títulos nobiliários com graças a generosas doações.

Entre suas atividades estava o tráfico de pessoas escravizadas na rota entre Angola e o Brasil. Historiadores estimam que pelo menos 10 mil pessoas tenham sido vendidas por Ferreira, sozinho ou em sociedade.

Ele emigrou para o Brasil em 1800 e, após a Independência, adquiriu a nacionalidade brasileira. Depois uma vida integrada e proeminente na corte da antiga colônia, decidiu regressar a Portugal. Reintegrado na sociedade e novamente com a nacionalidade lusa, morre em 1866, aos 83 anos, deixando uma grande fortuna para projetos de caridade.

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