FERNANDA MENA
TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – O desfecho do caso do jogador de futebol Daniel Alves, preso sob acusação de estuprar uma mulher em uma boate em Barcelona, ainda é incerto. Mas sua prisão preventiva, sem direito a fiança, ocorre num contexto jurídico e cultural novo na Espanha, ainda que seja construção de uma década dos movimentos feministas.
O arranjo institucional espanhol sobre violência de gênero se tornou modelo para a União Europeia (UE). O bloco reúne os países onde há mais igualdade entre homens e mulheres no planeta, mas também enfrenta impasses e retrocessos nesse campo.
Na UE, uma a cada três mulheres já sofreu violência física ou sexual pelo menos uma vez na vida, e ao menos uma a cada 20 foi vítima de estupro, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A Europa também vê com preocupação o aumento da violência online, que já atinge uma a cada dez mulheres na UE e é alvo de projetos de lei que tentam conceitualizar e criminalizar suas várias práticas.
Esse cenário, segundo o Instituto Europeu para Igualdade de Gênero, é fruto da desigualdade entre homens e mulheres em diversas dimensões e da falta da oferta de educação sexual e ensino de respeito entre os gêneros desde a infância. A presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, incluiu a equidade de gênero e o combate a violências do tipo como uma das prioridades da UE até 2025.
O modelo espanhol que levou Daniel Alves para a cadeia inclui protocolos de atendimento imediato a vítimas, difundidos entre funcionários de casas noturnas e de eventos culturais e de lazer, e treinamento de policiais no atendimento de mulheres.
Há, ainda, o peso de uma uma nova legislação. A Lei de Garantia da Liberdade Sexual, conhecida como lei do “Solo sí és sí” (só sim é sim), foi aprovada depois de dois anos de discussões e entrou em vigor na Espanha há três meses.
“A antiga lei determinava que a mulher que sofreu violência sexual tinha de comprovar que resistiu fisicamente à agressão”, explica a ativista Almudena Rodríguez García, da Associação de Direitos Sexuais e Reprodutivos, organização feminista baseada em Barcelona.
“Era um absurdo porque essa resistência fica impossibilitada no caso de a mulher estar imobilizada, sob ameaça ou simplesmente com medo de que qualquer reação lhe custe a vida.”
Mas a lei tem problemas, pondera, referindo-se aos casos em que foi usada para reduzir a pena de agressores já condenados, gerando embates entre o premiê Pedro Sánchez e a ministra da Igualdade, Irene Montero, principal responsável pelo projeto. “Mas ela promoveu avanços importantes e colocou a vítima no centro dos processos.”
A lei unificou agressão sexual e abuso sexual em um só crime, garantiu atendimento às mulheres mesmo quando não desejam denunciar seus agressores e criou meios de reparação às vítimas.
Segundo García, trata-se do resultado de “anos de trabalho dos coletivos feministas a partir da constatação de que o modelo policial e judicial não funcionava para questões relativas à violência baseada em gênero”. “A única resposta que as mulheres tinham do Estado era estigmatização, culpabilização e violência institucional.”
O ponto de virada foi o caso conhecido como “La Manada”, que chocou o país em 2016, quando uma jovem de 18 anos foi estuprada por cinco homens que mantinham um grupo de Whatsapp com esse nome.
“Eles receberam penas mais brandas que as de estupro porque, como não foi possível comprovar o emprego de violência, o caso foi classificado como de abuso sexual”, explica García.
A mobilização de grupos feministas em torno do caso gerou a produção dos protocolos que, anos depois, foram institucionalizados e aplicados no caso que hoje envolve o jogador de futebol brasileiro.
Para a ativista, foi crucial o fato de mulheres terem ocupado postos importantes na política institucional e partidária da Espanha, como a prefeita de Barcelona, Ada Collau, e Monteiro, a ministra da Igualdade, que criaram políticas com sensibilidade feminista.
“Com o reforço de protocolos, que vemos que estão funcionando, e a força de uma nova lei, o caso Dani Alves ocorre no momento em que esses novos marcos protegem mais a vítima e promovem uma resposta institucional mais ágil e adequada.”
Além da mobilização social e da ascensão de mulheres à política espanhola, a lei “Solo sí es sí” incorpora as principais diretrizes da Convenção do Conselho da Europa sobre prevenção e combate à violência contra mulheres, conhecida como Convenção de Istambul.
Trata-se do primeiro instrumento internacional sobre o tema que obrigada os Estados a cumprir as diretrizes, de maneira vinculante. Ele estabelece princípios de igualdade de gênero e de não discriminação, bem como medidas legais e políticas para prevenir a violência contra a mulher e promover o apoio às vítimas e a punição dos agressores.
Em um de seus pontos-chave, a convenção criminaliza a violência física, sexual e psicológica e as perseguições, e qualifica estupro como qualquer tipo de relação sexual não consentida.
A Convenção só não foi ratificada por Bulgária, República Tcheca, Hungria, Letônia, Lituânia e Eslováquia. Não deve ser coincidência, portanto, que sejam esses os países que figuram entre aqueles com menor igualdade de gênero no índice desenvolvido pelo Instituto Europeu de Igualdade de Gênero.
O índice usa indicadores de trabalho, educação, independência financeira, participação política e acesso a saúde, entre outros, e pontua países de zero (menor igualdade) a cem (maior igualdade).
Nos extremos do indicador estão Suécia (83,9) e Holanda (77,3) do lado de maior igualdade, e Grécia (53,4), Hungria (54,2), Polônia (57,7) e Eslováquia (56) entre aqueles mais desiguais.
São também esses os países que têm atrapalhado os esforços do Parlamento Europeu para que a UE ratifique a Convenção de Istambul.
Nos últimos anos, os debates em torno da ratificação do tratado se converteram em um campo político de batalhas entre governos progressistas e aqueles liderados por partidos da ultradireita europeia, que acusam o tratado de contrariar valores tradicionais da família e promover ideologia de gênero na educação.
Em julho de 2020, o governo da Polônia anunciou sua intenção de retirar-se da Convenção. E, em 2021, a Turquia, o primeiro país a ratificar o tratado, anunciou sua retirada do tratado que carrega o nome de uma de suas cidades, onde as normas foram elaboradas.
“Os países que optaram por não ratificar a Convenção de Istambul não estão, de fato, comprometidos em combater a violência machista”, avalia Cristina Fabre, chefe da unidade de violência de gênero do Instituto Europeu.
De maneira contraintuitiva, são esses os países onde dados sobre violência física e sexual contra mulheres são, em geral, mais baixos do que aqueles de países que estão no topo do ranking de igualdade de gênero. Assim, enquanto apenas 12% das mulheres da Bulgária relatam terem sido vítimas de violência física ou sexual ao longo da vida, na Holanda, que ocupa a terceira posição no ranking, são 41%.
“Isso significa que mulheres em países mais desiguais naturalizam violências sofridas e que, nos países com mais equidade, elas têm mais informação e consciência sobre essas agressões” afirma Fabre. “Além disso, o dado sugere que o arranjo jurídico para lidar com esse tipo de crime é melhor nesses lugares [com melhores posições no ranking], o que leva mais mulheres a fazerem denúncias.”
Ela cita o caso da Suécia, onde a taxa de condenação por crimes sexuais aumentou 75% depois de uma mudança na lei que definiu estupro como sexo não consentido, o que retirou a exigência de comprovação de resistência da vítima, como no caso espanhol.
Para Fabre, esse dispositivo legal ajudou na rápida reação do Judiciário espanhol em prender Daniel Alves. “Foi uma ação que mandou mensagens sociais muito fortes de que ninguém está acima da lei.”