Censo vive tragédia absoluta e dados não são confiáveis, diz ex-presidente do IBGE

(FOLHAPRESS) – A publicação dos dados preliminares do Censo Demográfico 2022 expõe a “tragédia absoluta” que se abateu sobre a pesquisa, avalia o ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) Roberto Olinto.

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Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele defende a realização de uma ampla auditoria dos dados para verificar se eles são válidos, se é preciso realizar um trabalho adicional ou, em caso extremo, se é o caso de elaborar um novo Censo.

“Por que tem que auditar? Porque esses dados não são confiáveis. Teve todos esses problemas, e uma coleta de seis meses é tudo que a demografia reclama. Não pode ser assim”, diz.

Hoje pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Olinto presidiu o IBGE entre junho de 2017 e dezembro de 2018. Antes, foi diretor de pesquisas do órgão e coordenador da área de contas nacionais, responsável pelo cálculo do PIB (Produto Interno Bruto) do país.

Especialista com experiência internacional na área de estatística, ele critica decisões tomadas pela direção que o sucedeu no IBGE e defende uma investigação para responsabilizar eventuais culpados pelas falhas na realização do Censo. “Quando você faz um Censo e decide que não vai fazer propaganda [para a população colaborar], isso vai contra uma regra. Isso foi doloso, não foi doloso?”, questiona.

O IBGE diz em nota que as contestações não procedem. Segundo o órgão, a metodologia da estimativa apresentada foi aprovada pelo conselho consultivo do Censo, formado por economistas, demógrafos e estatísticos como representantes da sociedade civil.

Segundo o IBGE, o resultado divulgado até agora representa um esforço “para entregar os dados populacionais devidamente atualizados dentro da melhor técnica estatística disponível com maior precisão e confiabilidade”.

PERGUNTA – Quais são os problemas do Censo?

ROBERTO OLINTO – Vou tentar fazer uma linha do tempo. Quando eu saí da presidência, Susana Cordeiro Guerra assumiu, vindo dos Estados Unidos, depois de 20 anos fora do Brasil e sem jamais ter trabalhado na área de estatística ou gestão de qualquer coisa. Começou, de forma extremamente prepotente, a mexer em todo o projeto. Reduziu o questionário, interferindo num projeto discutido com a sociedade civil. Diminuiu o orçamento, de R$ 3,4 bilhões para R$ 2,3 bilhões, sem nem tentar manter o que estava previsto. Exonerou o diretor de pesquisas e o diretor de informática. Um projeto que já vinha sendo trabalhado há cinco anos tem uma intervenção não só técnica, mas exonerando pessoas muito envolvidas e experientes.

Veio a Covid, depois cortam [de novo] o orçamento, Susana pede demissão. Teve todo um período aí meio complicado. Pelo menos o IBGE teria dois anos para se organizar.

O IBGE sabia desde o início que ia ter uma folha de pagamento de 250 mil pessoas. Tinha que preparar o sistema. Sai o Censo em 2022, começam a vir os comentários dos recenseadores. Cinco dias de treinamento, apenas. Atraso no pagamento, erros no valor. Você começa a observar os recenseadores pedindo demissão, irritados, abandonando o trabalho.

Eu sinto vergonha disso. O Censo é para ser levantado em dois meses [a coleta começou em 1º de agosto de 2022], e nós estamos no meio de janeiro e não terminou. Tem só metade dos recenseadores. O IBGE pedindo para a prefeitura do Rio de Janeiro botar agente municipal de saúde para coletar Censo. O cara não foi treinado, ele não sabe o que está fazendo. Tragédia absoluta.

Saem os resultados preliminares. Coisas absolutamente inexplicáveis. No Rio de Janeiro, os municípios da região metropolitana, todos caíram de população em relação a 2010. No Rio Grande do Sul, um número enorme de municípios judicializou, porque não sabe se o Censo está certo ou errado. Eu acho que está errado.

P.- Por quê?

RO- Eles imputaram dados para quase 20% da população. Imputar dado é você dizer: eu não tenho dados para 20% da população e vou usar um processo que normalmente se usa para 2%. Nenhum Censo cobre 100% da população, mas você tem uma alta cobertura. E tem problemas em algumas variáveis. Renda, população, idade. Não é uma coisa do tipo ‘eu não tenho informação de metade do município’. E o que estão fazendo? Estão imputando questionários inteiros.

P.- Usualmente cerca de 2% das informações do Censo são imputadas?

RO- Mais ou menos isso. É o que foi feito em 2010. Por que tem que auditar? Porque esses dados [do Censo 2022] não são confiáveis. Houve todos esses problemas, e uma coleta de seis meses é tudo que a demografia reclama. Não pode ser assim [com tanta demora].

Para ter o Censo confiável, tem que auditar. É tanto problema pregresso que tem que parar, respirar e dizer o seguinte: vamos avaliar. Uma comissão independente, obviamente com pessoas do IBGE e de fora, para dizer o seguinte: esses dados da população brasileira e suas variáveis são válidos e respeitáveis. Ou dizer: não são válidos, existem problemas e temos que discutir uma solução para isso. Pergunta: jogamos R$ 2,3 bilhões no lixo ou não?

P.- Como seria esse trabalho de análise dos dados?

RO- É um longo trabalho. Primeiro, de coerência estatística, comparando com o passado e cruzando com outras informações, inclusive voltando a coleta em alguns municípios para entender o que aconteceu. Se o Censo tivesse sido feito com todos os padrões de qualidade, o IBGE poderia dizer ‘acabou, é esse o dado, ponto final’. Mas foi feito cheio de erros e gerando desconfiança.

P.- Eu não acho que ele está certo. Todos os indícios são de que ele tem que ser revisto.

RO- Essa auditoria teria que dizer o que vai fazer no futuro. Vai fazer uma coleta em 2025 [ano previsto para a nova contagem populacional]? Vai ter que ampliar isso? Até no extremo tem que pensar: vai ter que fazer um novo Censo?

P.- É o caso de fazer um novo Censo?

RO- Essa auditoria responderia a isso. Tem três caminhos. A auditoria vai dizer que está bom -duvido. A auditoria vai dizer ‘existem partes que são aproveitáveis, mas nós temos que corrigir assim, assim, assado’. E existe a terceira alternativa: o Censo está uma porcaria completa, vamos refazê-lo. Não dá para tratar o Censo como se fosse uma brincadeira. É fundamental para a história do Brasil.

P.- Já estamos três anos atrasados. Pelo que o sr. está falando, há uma série de inconsistências que levam ao risco real de se precisar de um novo Censo. Já não seria o caso de tomar uma decisão rapidamente em relação a isso?

RO- Aí entra numa questão de governo, Orçamento, e você ainda não tem a dimensão do que precisaria para fazer o novo Censo. Poderia raciocinar da seguinte forma: estamos numa catástrofe estatística e vamos colocar no Orçamento verba para fazer um novo Censo. Se não for preciso, economiza dinheiro. Se for preciso, a gente faz um novo Censo. Mas, para isso, observe um dado: a ministra Simone [Tebet] ainda não escolheu um presidente do IBGE.

P.- Como deve ser a preparação de um Censo?

RO- Um censo demográfico tem como base um excelente treinamento dos recenseadores. Eles têm que ser desde especialistas no que está no questionário até no que as pessoas não estão falando. Como eles vão lidar com a negativa ou com o assédio de um informante? Eles têm que saber lidar com isso, e não foi feito. E, chave, isso é fundamental: muita propaganda, muito esclarecimento da população para colaborar. Não foi feito nada. Nada! Usaram Instagram e Facebook.

No Censo de 2010, você tinha recenseador na novela das 9. Você colocava faixa em campo de futebol. Isso é o bê-á-bá de um Censo. Se não esclarecer a população, não consegue resposta. Por que isso não foi feito? Por que não teve publicidade? Por que atrasou operacionalmente seis meses a coleta? Foi tudo desorganizado. Tem indícios de que houve decisões da direção erradas e que talvez mereçam uma investigação.

P.- Para eventual responsabilização?

RO- Exato. Uma responsabilização. Acho que o Tribunal de Contas vai ter que avaliar esse negócio todo. Não pagaram recenseador, onde é que está esse dinheiro?

Há uma necessidade de avaliação das decisões que foram tomadas pela direção do IBGE. [É preciso verificar] se esse processo de quatro anos teve decisões corretas ou decisões que merecem uma advertência, uma punição. Não estou nem falando em crime, mas de processo administrativo. Quando você faz um Censo e decide que não vai fazer propaganda, isso vai contra uma regra. Isso foi doloso, não foi doloso?

P.- O IBGE adiou a divulgação da Pnad Contínua, que traz dados sobre emprego e renda no país, sob a justificativa de concentrar esforços no Censo. Qual é a consequência disso?

RO- Nunca se tinha atrasado uma pesquisa conjuntural. Isso foi contra tudo. Arrebenta o Censo Demográfico e, não satisfeito, arrebenta a Pnad também. Por que tinha que afetar a Pnad?

O grande dano é que começa a afetar a credibilidade da pesquisa. Os padrões de estatísticas são muito claros. As pesquisas conjunturais devem respeitar exatamente o seu cronograma. O problema vazar para uma pesquisa fundamental, que é a pesquisa de emprego, eu acho inaceitável. Assuma o seu problema no Censo e proteja as outras pesquisas.

Não que vá ter problema nos resultados da Pnad, não é isso, mas é a questão da contaminação e da credibilidade. Já existe um mal-estar em relação ao Censo, vai criar um mal-estar em relação à Pnad? Daqui a pouco vai criar um mal-estar em relação aos [índices de] preços? As fronteiras têm que ser muito bem definidas.

RAIO-X
Roberto Olinto, 70
Engenheiro com mestrado e doutorado na área, ingressou no IBGE em 1980. Atuou como gerente de Contas Nacionais de 1998 a 2005, período em que ajudou a desenvolver o novo sistema de cálculo do PIB trimestral no Brasil. Em 2005, virou coordenador da área. Em 2014, tornou-se diretor de pesquisas. Em junho de 2017, assumiu a presidência do IBGE, permanecendo até o fim de 2018. Já foi membro do grupo de conselheiros em contas nacionais da ONU (Organização das Nações Unidas) e consultor do Departamento de Estatísticas do FMI (Fundo Monetário Internacional). Hoje, é pesquisador associado do FGV Ibre.

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