(FOLHAPRESS) – Cansadas e sem força para respirar, crianças yanomamis com desnutrição grave chegam ao Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista, e precisam de um leito de UTI.
A falta de comida altera o organismo desses meninos e meninas desnutridos, muitos deles com poucos meses ou anos de vida. Eles estão magérrimos, têm um olhar triste e distante quando despertos, estão exaustos do quadro de diarreia e pneumonia associados à desnutrição.
Na UTI, as crianças precisam ser intubadas, uma estratégia necessária diante da impossibilidade de respiração. Infecções são tratadas, e um protocolo para realimentação é iniciado.
Na tarde desta quarta-feira (25), cinco leitos da UTI do Hospital da Criança são ocupados por yanomamis.
As crianças da maior terra indígena do Brasil, que vive uma crise sanitária e de saúde pública, estão presentes em praticamente todos os setores da unidade de saúde, sendo maioria em boa parte dessas alas.
A reportagem esteve na unidade e percorreu seus diferentes setores, o que permitiu constatar o tamanho da gravidade da crise de desassistência em saúde, com explosão de casos de desnutrição grave e de doenças evitáveis como verminoses e malária.
Os yanomamis estão em grande número na UTI, em enfermarias -onde redes são dispostas ou improvisadas para uma adaptação a seus costumes- e principalmente na ala de emergência dedicada a casos de infecção respiratória.
Os quadros de desnutrição grave são visíveis. As crianças estão muito magras, desidratadas e doentes.
Muitas delas não têm as mães como acompanhantes, pois as mulheres também estão desnutridas e internadas em outros hospitais da rede pública. Braços e mãos carregam esparadrapos por causa de perfurações para hidratação por soro ou injeção de nutrientes por via endovenosa.
O Hospital da Criança Santo Antônio integra a rede municipal de saúde e é referência no atendimento infantil. Não há em Boa Vista outra unidade de saúde da rede pública dedicada a crianças.
O hospital é fundamental para a crise de saúde envolvendo os yanomamis, e vem recebendo cada vez mais pacientes, em linha com a desassistência em saúde na terra indígena durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
Desde a declaração do estado de emergência em saúde pública pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último dia 20, o Santo Antônio passou a acolher ainda mais pacientes, resgatados nas aldeias.
Em 2022, houve 703 internações de crianças yanomamis, o que significa quase duas por dia. Pela UTI, passaram 65 indígenas, ou cinco por mês. Vinte e nove crianças yanomamis morreram no Hospital da Criança em 2022.
A situação foi pior do que a verificada nos anos anteriores, segundo gestoras da unidade de saúde. Os dados de 2021 não foram sistematizados.
Somente neste mês, 96 crianças yanomamis foram internadas na unidade. Quase metade permanece no hospital.
O deslocamento da terra indígena a Boa Vista não é fácil, em razão das longas distâncias e da necessidade de transporte aéreo -houve apagões nesse transporte, a cargo da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) do Ministério da Saúde, ao longo de 2022.
Os diagnósticos preponderantes no hospital são de desnutrição grave, infecção respiratória, diarreia e malária. Quando as crianças chegam à unidade, estão desnutridas e desidratadas.
As equipes de saúde constatam que os yanomamis e os indígenas de outras etnias que vivem no território são os que estão em pior condição de saúde, em comparação com outros indígenas -como os de Raposa Serra do Sol-, com outros brasileiros e com venezuelanos que também buscam o Hospital da Criança.
As famílias estão precisando de coisas básicas nas comunidades: peixe, farinha, água potável. O acesso a esses mantimentos, antes corriqueiros na rotina yanomami, se perdeu em razão da invasão de 20 mil garimpeiros no território, estimulados pelo governo Bolsonaro. O mercúrio contamina a água e a atividade de exploração de ouro foi frenética ao longo dos quatro anos da gestão passada.
“Existe um descaso na área indígena”, afirma Regiane Matos, secretária de Saúde do município de Boa Vista.
Ela conta que, num único dia, 13 de janeiro, chegaram 23 crianças yanomamis de uma vez só. O descaso e o abandono são tão marcantes que já houve transporte de crianças com malária até a unidade de saúde por parte de garimpeiros ilegais.
“Esse quadro de desnutrição grave, infecção respiratória, diarreia, malária é muito arriscado, pois as crianças podem ir a óbito muito rapidamente”, diz Francinete Rodrigues, diretora-geral do Hospital da Criança.
Com a ajuda do tradutor Richard Duque, que tem contato com a terra yanomami desde 1993 e que trabalha no Hospital da Criança desempenhando esse papel, a reportagem conversou com pais e acompanhantes de crianças internadas na unidade.
Um indígena de nome Marcelo acompanhava as duas filhas -Marina, a mais velha, e a caçula, ainda sem nome- internadas por desnutrição grave. A mais nova ainda não conseguiu ganhar peso, e está magérrima.
A mãe também tem desnutrição grave, e foi encaminhada para internação em outro hospital da rede pública.
“É a época da fome”, disse Marcelo, conforme a tradução de Duque.
Segundo o indígena, um tratamento prolongado para tuberculose o impediu de trabalhar para dar assistência à família. As visitas de agentes de saúde em sua comunidade -Oroxofi, na região de Kataroa, perto da fronteira com a Venezuela- são esporádicas.
A filha de Livaldo, Kraciene, também está desnutrida, e vem recuperando peso, timidamente, no Hospital da Criança.
A família de Livaldo mora nas proximidades de Surucucu, uma das regiões mais afetadas pela desassistência em saúde, cuja consequência foi a proliferação de casos de desnutrição grave -muitos indígenas resgatados após a declaração de emergência são de lá.
Segundo a coordenação das ações de emergência, cinco pólos-base de saúde na região foram desativados em razão da presença dos garimpeiros.
Livaldo diz que sua comunidade expulsou garimpeiros da região, por terem “levado doença” para o lugar. Ele afirma que existe uma mobilização dos indígenas para deixarem o local, e pede ajuda do poder público para conseguir se distanciar mais do garimpo ilegal.
Segundo o indígena, dois filhos morreram de malária. Outros oito adultos da comunidade morreram com a doença. Ele atribui o surto ao avanço dos garimpeiros na área.