FERNANDA PERRINWASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – A maior projeção global buscada pelo Brasil desde os anos 2000 tem provocado com frequência tensões com o governo dos Estados Unidos, numa fase em que a hegemonia alcançada nos anos 1990 começa a ser questionada por seguidas crises econômicas e geopolíticas.
Do lado brasileiro, a explicação predominante para esses atritos é que os EUA esperam um alinhamento total de Brasília -como aconteceu durante o governo Bolsonaro. Já Washington rejeita essa visão.
“Essa narrativa existe, mas não acredito nela. Mesmo com certas dificuldades, a Casa Branca manteve relações pragmáticas com Fernando Henrique e Lula apesar de diferenças sobre a Alca e o Iraque”, diz Nicholas Zimmerman, diretor para Brasil e Cone Sul do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca durante a presidência de Barack Obama e sócio-fundador da consultoria Dinamica Americas.
O período de Zimmerman no governo coincide com as duas maiores crises na relação entre Brasil e EUA na última década: a negociação de um acordo nuclear com o Irã e a espionagem de Dilma Rousseff.
Embora houvesse expectativas de uma sintonia entre Lula e Obama, a relação entre os dois foi muito mais conturbada do que com George W. Bush. Antes mesmo de tomar posse, o petista viajou aos EUA -seguindo uma estratégia pragmática de que uma boa relação com os americanos era importante para seu governo.
“Na época da primeira eleição do Lula, o principal parâmetro de comparação era o Chávez na Venezuela. Havia um temor claro de que o Brasil seguisse um caminho parecido”, diz o cientista político Guilherme Casarões, professor-visitante na Universidade Brown e vinculado à Fundação Getulio Vargas.
O foco de Bush na Guerra ao Terror após o 11 de Setembro, no qual o Brasil tinha pouca relevância, também abriu mais espaço para o país cultivar articulações regionais. A perda de apoio da opinião pública após a invasão do Iraque leva os americanos a entender que precisavam recuperar a legitimidade internacional, e que uma boa relação com o Brasil seria importante nessa empreitada.
“Em 2005, os EUA lançam um documento chamado Estratégia de Segurança Nacional em que reconhecem a necessidade de construir relações positivas e cooperativas com as principais potências do mundo, e o Brasil estava nessa lista”, aponta Casarões.
Tudo muda com a crise financeira de 2007-2008, mais uma rachadura na hegemonia americana já na mira pelas intervenções no Oriente Médio. Os dois problemas são vistos pelos emergentes, inclusive Brasília, como oportunidades para ampliar seu papel global. Obama assume tendo, justamente, que reagir a isso, destaca o cientista político.
Foi nesse contexto que o Brasil intermediou junto com a Turquia a negociação de um acordo nuclear com o Irã. Logo após o anúncio, porém, os EUA propuseram e conseguiram aprovar uma nova rodada de sanções contra o país no Conselho de Segurança da ONU, o que foi entendido como um golpe pela diplomacia brasileira.
“Eu acho que houve uma falta de comunicação entre os dois governos. Houve interpretações e agendas políticas diferentes e acho que, no final das contas, houve uma falta de confiança nos termos do acordo costurado, justamente por causa dessa falta de comunicação e coordenação constante entre os dois lados”, afirma Zimmerman.
Outra tensão entre os países foi o envolvimento brasileiro na crise política de Honduras em 2009, quando o presidente deposto, Manuel Zelaya, abrigou-se na embaixada brasileira. A participação do país em uma área em que os americanos entendem ser de sua influência direta desagradou o Departamento de Estado, afirma Casarões.
As relações melhoram quando Dilma Rousseff assume a Presidência. Diferentemente do antecessor, a petista adota uma visão de integração regional mais focada em infraestrutura do que em política, e deixou para trás as ambições globais de Lula, avalia Casarões. Isso criou menos pontos de atrito com os americanos.
Os governos também conseguiram avançar em agendas de cooperação climática, militar e comercial. No entanto, o principal episódio que ficou marcado desse período foi a revelação em 2013 de que os americanos espionaram a presidente brasileira, entre outras autoridades, o que levou Dilma a cancelar uma visita programada a Washington.
“Acho que a relação bilateral nessa época é uma história mal contada. Foi um dos momentos mais positivos na história recente, Dilma e Obama se davam bem. É verdade que teve o WikiLeaks [que revelou a espionagem] e colocou a Dilma numa situação de ter que reagir. Acho que Obama sempre entendeu a política dela”, defende Zimmerman.
Ao longo da crise política que desembocou no impeachment da petista, os EUA não se manifestaram. Segundo o americano, o entendimento foi de que a soberania brasileira deveria ser respeitada.
A chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto muda drasticamente a política externa brasileira, que passa a adotar um alinhamento total aos EUA de Donald Trump. Embora o país não fosse importante para o republicano, o presidente brasileiro era na medida em que representava mais uma liderança de extrema direita no poder.
“Acho que há uma visão ideológica do Steve Bannon e do próprio Trump de entender o Brasil como um aliado de primeira hora para o avanço de uma pauta ideológica muito mais ampla, que ia muito além da política externa americana. Eram outros valores que estavam sendo defendidos, não de maneira interestatal, mas de maneira transnacional”, analisa Casarões.
Atualmente, apesar dos interesses comuns de Joe Biden e Lula em temas como transição energética, combate à extrema direita e desenvolvimento inclusivo, analistas veem poucos avanços concretos na relação entre os países.
A leitura é que, mais uma vez, pesa a busca do Brasil por uma postura independente: em um momento em que os EUA lidam com duas guerras -a invasão da Ucrânia pela Rússia e o conflito entre Israel e o Hamas em Gaza-, o governo brasileiro diverge da posição de Washington.
“A assimetria é a marca fundamental dessa relação até hoje. É claro que para o Brasil é interessante diminuí-la, mas é muito difícil, de modo que, para o país, há uma expectativa de garantir uma independência da ação mantendo uma relação cooperativa com os EUA. Da perspectiva dos EUA, há uma expectativa de cooperação desde que o Brasil se alinhe a certas pautas, o que não acontece muitas vezes”, resume o cientista político.