SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As imagens de prédios reduzidos a ruínas ao lado de edifícios sem grandes avarias aparentes levantou discussões entre especialistas sobre a qualidade das construções na Turquia após os tremores que devastaram cidades do sudeste do país e deixaram pelo menos 15 mil mortos até esta quarta-feira (8).
O planejamento urbano e a falta de coordenação entre leis e regulações sobre o assunto, além de sua politização, também são alvo de críticas. Um exemplo é a proposta do governo de Recep Tayyip Erdogan, em 2018, que concedeu anistia aos responsáveis por construções irregulares pouco antes das eleições daquele ano. Ele era o favorito, embora estivesse diante de um cenário de turbulência política e desvalorização da lira turca.
A medida era parte de um pacote de perdão de dívidas e tinha como alvo uma imensidão de construções irregulares do país. Para os proprietários de imóveis com alguma irregularidade, bastava se inscrever em um site, no qual eram solicitados documentos pessoais e informações do imóvel, e pagar uma taxa que seria calculada de acordo com o valor da construção e sua área. Dali em diante, o imóvel seria considerado regularizado, teria multas perdoadas e poderia acessar as redes de energia, água e gás.
O pacote de bondades de Erdogan gerou aumento de receitas a curto prazo para o governo e levou à regularização de propriedades que estavam com qualquer tipo de desvio em relação à legislação. Em julho de 2018, cerca de um mês após a eleição, o número de inscrições para a regularização passou de 2,6 milhões, segundo artigo publicado na Revista Turca de Engenharia em 2020.
Em fevereiro de 2019, 21 pessoas morreram no desabamento de um edifício residencial que tinha três de seus oito andares construídos ilegalmente -o imóvel, porém, havia sido regularizado pela medida de Erdogan.
“[A anistia] significa a transformação das nossas cidades, notadamente Istambul, em cemitérios, e resultará em caixões saindo de nossas casas”, afirmou à época Cemal Gokce, então presidente da Câmara de Engenheiros Civis do país. “Se as construções estão completamente irregulares ou se têm mais andares do que o projeto original, todas puderam ser anistiadas. Isso é muito perigoso.”
Construções informais não são novidade na Turquia, tampouco seu uso político desde metade do século 20, quando o país começou seu salto em termos de urbanização. Segundo o Banco Mundial, apenas 32% da população do país vivia em áreas urbanas em 1960, ante 77% em 2021 -no Brasil, os dados correspondentes a esses anos são 46% e 87%, respectivamente.
Na década de 1980, por exemplo, o país legalizou bairros inteiros, com destaque para os “gecekondu” (algo como “construído da noite para o dia”), construções informais que cresceram especialmente em grandes cidades e fazem parte do cenário urbano do país. A medida acabou estimulando novos empreendimentos irregulares.
A atividade informal é aspecto importante da construção civil turca, que por sua vez correspondeu a 5,4% do PIB do país em 2020, ano em que o setor recebeu investimentos de € 78 bilhões (R$ 435 bi, em valores não corrigidos), de acordo com a Federação Europeia da Indústria de Construção.
“O fator número um [para a escala da destruição do terremoto desta semana] foi a qualidade das construções”, disse à revista Scientific American Ross Stein, CEO da Temblor, empresa especializada na modelagem de catástrofes como os tremores desta semana. “A qualidade construtiva é controlada por leis de construção e sua fiscalização. A Turquia tem legislação moderna sobre o assunto desde o terrível terremoto de 1999 em Izmit [que deixou mais de 17 mil mortos]. Então, por que os prédios caíram? Eles eram antigos? Ou não foram devidamente reforçados?”, questionou Stein.
Peli Pinar Giritlioglu, presidente da filial de Istambul da União das Câmaras de Engenheiros e Arquitetos Turcos, fez análise semelhante. “A devastação extraordinária é perpetuada pela persistência em repetir políticas de urbanização falhas e de decisões politicamente carregadas, como a lei de anistia de 2018.”
Erdogan tem sido criticado pela população afetada pelo sismo desta semana pela demora na chegada de socorristas e falta de assistência em meio ao frio e à fome. Em Gaziantepe, uma das cidades atingidas, a população questiona o que foi feito do dinheiro recolhido com a chamada “taxa de terremoto”, um pacote de novos impostos implementado no país após o tremor de 1999. Suas receitas, estimadas em US$ 4,6 bilhões (cerca de R$ 24 bilhões), supostamente foram revertidas na prevenção de catástrofes como a de agora e na promoção de serviços de resgate. Os efeitos, no entanto, ainda não estão claros.