Dificuldade no diagnóstico atrasa tratamento de neuromielite óptica, doença que pode cegar

RAFAELA MALVEZI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Rara, sem cura e pode causar danos permanentes, como cegueira e paralisia. Essa é a neuromielite óptica, doença autoimune ainda pouco conhecida e divulgada, mas que pode afetar quase 5.000 brasileiros, segundo estimativas da Academia Brasileira de Neurologia e da associação Crônicos do Dia a Dia.

 

Os sinais mais comuns são perda de visão, fraqueza muscular (especialmente nas pernas e nos braços), alterações de sensibilidade (dormência, formigamentos, descontrole da bexiga e do intestino) e surtos de soluços, náuseas e vômitos que não param e não têm motivo aparente.

O diagnóstico rápido e o tratamento adequado melhoram a qualidade de vida para os pacientes. Mas esse ainda é um desafio. Rafaele Maria, 26, esperou dez anos para ser diagnosticada. Nesse período, conviveu com crises recorrentes de neurite óptica, uma inflamação no nervo dos olhos, e fortes dores de cabeça.

“Desde a primeira vez, quando tinha 14 anos, fui perdendo alguns pontos definitivos da visão”, conta. Aos 22, a dormência e o formigamento nas pernas apareceram sutilmente. Aos 23, com dores nos membros inferiores e inflamação nos rins, foi internada e ficou três dias sem conseguir andar.

A doença afeta principalmente o nervo óptico e a medula espinhal. Os sintomas ocorrem individualmente ou combinados. Sem o tratamento correto, as crises continuam ao longo do tempo de maneira imprevisível.

No caso de Rafaele, os ataques foram controlados de forma paliativa antes do diagnóstico, que só veio aos 24 anos. Com as recorrências, os médicos conectaram as diversas crises, pediram novos exames e identificaram a doença.

Dificuldades do diagnóstico
Os sintomas não indicam de forma óbvia a origem da neuromielite óptica que, além de ser rara, é desconhecida por médicos que não sejam neurologistas.
“Às vezes, um sintoma abrupto e que parece não relacionado ao cérebro é interpretado como um outro problema”, explica Rodrigo Thomaz, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein. “Se o paciente tem uma neurite óptica, isso acaba sendo tratado pelo oftalmologista com um corticoide. E passa.”

Nesses casos, a fase aguda é controlada, mas a doença, não. Cada crise pode deixar sequelas. Rafaele, por exemplo, já perdeu a visão periférica dos dois olhos.

Outro obstáculo é o acesso aos especialistas, sobretudo para a população que precisa do sistema público de saúde. De acordo com a última Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE em 2019, 7 em cada 10 brasileiros dependem exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) para tratamentos, atendimento hospitalar e outros serviços.

No caso de Rafaele, que mora no interior de Pernambuco, os centros de referência a que tem acesso ficam em Recife, a cerca de 180 km de distância de Belo Jardim, sua cidade natal. A cada quatro meses, ela tem que se deslocar para fazer o acompanhamento clínico na capital do estado.

A doença atinge principalmente mulheres. A incidência nelas é nove vezes maior do que nos homens. Além disso, estudos internacionais indicam que as populações negras e asiáticas são as mais afetadas.

O número de pessoas com a doença no país deve ser maior que o estimado, porque a mistura de etnias pode ser um fator de impacto. “O indivíduo de pele branca às vezes tem genes negros e vice-versa”, diz Marco Aurélio Lana-Peixoto, presidente do conselho do BCtrims, comitê brasileiro que estuda a doença na América Latina.

Um dos objetivos da instituição é entender como a neuromielite óptica se comporta na variedade racial. “As manifestações e as respostas ao tratamento no Brasil podem ser diferentes daquelas em países europeus e nos Estados Unidos”, explica.

ACESSO AO TRATAMENTO
Após receber o diagnóstico, Rafaele começou o tratamento com prednisona, que tem ação anti-inflamatória, e azatioprina, que regula o sistema de proteção e defesa do organismo. Os remédios estabilizam a doença e reduzem a possibilidade de novos ataques.

Esses medicamentos, porém, não são específicos para neuromielite óptica. Há drogas mais eficazes para a doença, como o ravulizumabe, o satralizumabe e o inebilizumabe. Apesar de serem registrados pela Anvisa, eles ainda não estão incluídos no SUS.

Em junho, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) negou a incorporação do inebilizumabe. O alto custo -muito acima do limite estabelecido no caso de doenças raras, de até R$ 120 mil- foi uma das justificativas.

“Esperar a pessoa ter um surto e ficar debilitada é mais custoso, porque vai precisar de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez”, afirma Cleide Lima, presidente da Associação Brasileira de Neuromielite Óptica. “É melhor dar o medicamento e a pessoa continuar bem, sem sofrimento e produtiva.”

A Conitec também identificou a necessidade de incorporar o teste diagnóstico aquaporina-4 (AQP4-IgG) antes mesmo do remédio. “Esse exame ajuda a definir boa parte dos casos de neuromielite óptica”, diz a neurologista Raquel Vassão, que ajudou a elaborar o pedido de inclusão do teste no SUS. A iniciativa foi da associação Crônicos do Dia a Dia, e o documento foi submetido à Conitec em 27 de agosto, com prazo de análise de 180 dias.

No fim do ano passado, com a doença estabilizada, Rafaele conseguiu estudar para se tornar comissária de voo. A expectativa é que, no ano que vem, ela passe no exame físico para ingressar na profissão.

Esta reportagem foi produzida durante o 9º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha de S.Paulo, que contou com o patrocínio do Laboratório Roche e do Hospital Israelita Albert Einstein.

 

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