FERNANDA MENA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A eleição presidencial americana reflete um abismo de gênero que tem se intensificado desde 1980 no país. Homens votam majoritariamente no republicano Donald Trump; mulheres, na democrata Kamala Harris. Mas há nuances, e grupos dentro desses eleitorados estão em disputa pelos dois candidatos.
Kamala tem 12 pontos percentuais a mais que Trump no eleitorado feminino (50% contra 38%), segundo pesquisa de outubro da Reuters/Ipsos com 14 mil eleitores. Em 2020, a vantagem de Joe Biden entre mulheres era de 5 pontos. Já Trump tem 7 pontos de vantagem sobre Kamala entre os homens (48% a 41%). Em 2020, era apenas 1 (45% a 44%).
Já um levantamento do Emerson College com mil entrevistados coloca Trump em vantagem de 13 pontos sobre Kamala no eleitorado masculino, e ela tem 10 pontos de dianteira no voto feminino –uma vantagem menor do que a de Biden em 2020 sobre Trump, o que sugere um avanço do republicano entre as mulheres.
É apenas a segunda vez na história dos Estados Unidos que uma mulher é candidata à Presidência por um grande partido –e isso não é um detalhe, para o bem e para o mal.
A pioneira, Hillary Clinton, perdeu para Trump em 2016 numa campanha marcada por ataques sexistas que colocaram o republicano no campo da misoginia, mas galvanizaram em torno do ex-presidente correntes conservadoras antifeministas, neopatriarcais e religiosas.
Agora, 42% das mulheres democratas afirmam que o gênero, a raça e a etnia de Kamala vão pesar contra ela nas urnas, enquanto apenas 14% dos homens eleitores afirmam que o gênero, a raça e a etnia o prejudicariam na corrida.
Kamala evitou focar sua identidade durante a campanha, enquanto Trump evocou as mulheres para dizer que será “seu protetor”, quer elas queiram ou não –um comentário considerado apelativo e infantilizador.
Pesam também na atual divisão de gênero do eleitorado os marcadores de idade (quanto mais jovens, mais mulheres votam em Kamala, e homens, em Trump), de escolaridade (mais instruídos votam na democrata, menos instruídos no republicano) e de raça (negros a preferem, brancos vão mais com ele).
“Há uma homogeneização de identidades, como se mulheres e negros sempre votassem em democratas enquanto homens e brancos sempre votassem em republicanos. Mas essas identidades são muito mais fluídas do que se imagina”, aponta Alessandra Devulsky, professora de direito da Universidade do Québec, em Montreal, e pesquisadora de gênero e raça.
Além disso, questões culturais mais difusas, como percepções sobre equidade e papéis de gênero, sobre o movimento woke e o politicamente correto têm ampliado a polarização entre os dois sexos.
Hoje, há mais homens e mulheres que dizem acreditar que seus respectivos gêneros os colocam em uma situação de desvantagem social nos EUA. Segundo pesquisa do American Enterprise Institute, think tank conservador baseado em Washington, 70% dos apoiadores de Trump afirmam que o país não faz o suficiente para que meninos se tornem homens de sucesso, mas só 35% consideram o mesmo no caso de meninas. Entre os democratas, as porcentagens são 61% e 68%, respectivamente.
Oito em cada dez (82%) eleitoras democratas afirmam que há poucas mulheres em altos cargos políticos dos EUA, ao passo que apenas 19% dos homens republicanos têm a mesma avaliação, indica estudo do Pew Research Center.
“Grande parte da divisão de gênero não vem apenas do fato de Kamala ser uma mulher, já que mulheres foram amplamente favoráveis a Biden em 2020. As diferentes posições dos dois partidos foram ampliadas nos últimos anos pela decisão da Suprema Corte de 2022 de revogar as proteções aos direitos reprodutivos do caso Roe versus Wade”, afirma o cientista político Jonathan Hanson, professor de estatística da Universidade de Michigan, em referência à decisão que derrubou o direito em âmbito federal ao aborto.
Hanson aponta que muitas unidades da Federação, incluindo Michigan, um estado-pêndulo, correram para criar referendos que pudessem restaurar localmente esses direitos. “Essa foi uma questão chave nas eleições para governador e parlamentares de 2022 e favoreceu os candidatos democratas. É ainda uma preocupação muito forte.”
Para Kendall Thomas, professor de direito da Universidade Columbia, em Nova York, especialista em teoria crítica de raça, feminismo e sexualidade, além de Roe vs. Wade pesam contra Trump as revelações de assédio sexual, na esteira do movimento MeToo, que levaram o ex-presidente aos tribunais.
“Há um segmento de mulheres que se uniram a Kamala Harris e que se distinguem não apenas pelo fato de serem mulheres, mas pelo fato de serem instruídas. Acho que existe um abismo de formação tão grande quanto o de gênero”, afirma Thomas.
Cientes desse racha, as campanhas de Kamala e Trump têm reforçado essa trincheira. Ela reforçou às eleitoras que elas “podem votar em quem quiserem, e ninguém nunca vai saber”, como anunciado em vídeo narrado pela atriz Julia Roberts.
Kamala avançou também sobre a fatia de mulheres brancas que votaram em Trump nas duas últimas eleições presidenciais. A democrata supera o republicano em 2 pontos percentuais neste grupo, segundo a pesquisa Reuters/Ipsos. Em 2020, Trump tinha 16 pontos a mais que Biden nesse eleitorado.
O republicano corteja o eleitorado masculino branco, mas também negro e latino conservador. Investiu em ícones de força e de poder para seus comícios, que tiveram o ex-lutador Hulk Hogan e o bilionário Elon Musk como garotos-propaganda.
Ele também fez turnês pela chamada manosfera, rede de comunidades online, entre blogs, podcasts e fóruns, de caráter misógino e antifeminista que promovem a masculinidade tradicional e seus ideais, condenando as restrições impostas pelo que chamam de politicamente correto. Para Hanson, “é um apelo a uma certa masculinidade, do cara durão, que ecoa nos homens em geral, independentemente de sua raça.”