(FOLHAPRESS) – A policial Páris Borges Barbosa decidiu entrar para a Polícia Rodoviária Federal em 2012. Na época precisou raspar o cabelo. Com o tempo, conseguiu deixar ele crescer, e logo virou alvo de piadas machistas e homofóbicas.
Cinco anos depois de estar na corporação ela assumiu publicamente ser uma mulher transexual –o que fez a situação piorar, conta. Foi chamada por colegas de trabalho de “aberração da natureza”, “traveco”, “falsificação de mulher”. Alguns agentes homens não queriam mais trabalhar na mesma viatura.
A perseguição também vinha em pequenos atos do alto escalão, como o engavetamento de pedidos de afastamento para cursar mestrado e doutorado e a demora em ser transferida para a Academia da Polícia Rodoviária Federal de Santa Catarina.
Em 2022, quando já estava na academia da PRF, não a liberaram para o doutorado com a justificativa de que haveria impacto no efetivo. No dia seguinte, recebeu a notícia de que iria com mais cinco colegas para a área operacional.
Páris foi a única a não ir para a nova função e foi colocada para atender telefone. Dias depois soube que a atitude do superior ocorreu para que não voltasse ao serviço de rua e “manchasse a imagem da corporação”.
“A função de atendente de telefone foi o ato mais cruel que um superior cometeu contra mim. Falar ao telefone é angustiante porque a pessoa que está do outro lado não sabe que eu sou mulher e ao me ouvir me trata com o pronome masculino e começa a me chamar de senhor. Eu saía todos os dias emocionalmente destruída”, disse.
Páris chegou ao limite em novembro do ano passado e pediu afastamento por causa das crises de ansiedade. No mês de dezembro expôs os mesmos problemas na Câmara dos Deputados e teve um processo disciplinar aberto.
A Polícia Rodoviária Federal disse, em nota, que tem sua cultura fundada no acolhimento à diversidade, onde se inclui o respeito à orientação sexual e à identidade de gênero. Denúncias que tenham como causa a LGBTfobia, o sexismo e a misoginia devem ser levadas às instâncias correcionais.
“[As denúncias] serão investigadas com o rigor que merecem. Investimos nossa comunicação na linguagem inclusiva e sem aberturas para discursos internos excludentes.”
A LGBTfobia institucional tem ocorrido de forma silenciosa nas corporações. Doenças psiquiátricas, afastamentos, abandono de carreira são algumas das marcas deixadas. A Folha mapeou casos em polícias militares, civis, na Polícia Rodoviária Federal, na Polícia Federal, em polícias penais e científicas e nos Bombeiros.
A antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz, professora da graduação em segurança pública na UFF (Universidade Federal Fluminense), considera que o ambiente dessas corporações carrega uma uma ideia de masculinidade e virilidade. Por isso, a LGBTfobia é pior dentro delas na comparação com o resto da sociedade.
As corporações são formadas majoritariamente por homens. Levantamento feito pela Folha mostra que 558.749 pessoas fazem parte dos efetivos dos Bombeiros, das perícias criminais e das polícias Militar, Civil, Federal e Rodoviária Federal no país. Desse total, 476.342 são homens, o equivalente a 85%.
“Existe a construção de um heroísmo. Se você procura apoio terapêutico ainda é estigmatizado de maluquinho, problemático. Homem que é homem não chora, herói que é herói não sente dor. Tem a construção de um heroísmo irreal”, afirma Muniz.
Em 2018, um edital da Polícia Militar do Paraná gerou polêmica por exigir dos candidatos um grau de masculinidade. “Capacidade de o indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”, dizia.
Para Muniz, esse problema de invisibilidade nas corporações tem consequências e pode agravar doenças psiquiátricas.
Os ataques homofóbicos vividos por Henrique Harrison na Polícia Militar do Distrito Federal resultaram em ansiedade e depressão. A opção para melhorar a saúde mental foi deixar a corporação em março de 2022.
Harrison conta que deixou claro no primeiro dia do curso de formação que é gay. Inicialmente, sentiu olhares diferentes. Ao dar um selinho no namorado durante a formatura, em 2019, a situação piorou.
Assunto foi o mais comentado nos grupos institucionais. Ele afirma que, depois disso, foi ofendido por colegas e superiores. Um áudio dizia que ele estava arruinando a imagem de 200 anos da corporação.
Harrison diz que foi recusado em alguns batalhões porque os superiores não queriam sua presença. Ele também levou oito punições em quase três anos de corporação, uma delas por ter um pelo na sua farda e também por postar vídeo no quarto em que a arma aparecia na cômoda.
“Não entrei na corporação para ser militante, mas não abri mão de mostrar quem sou. Eu sempre vivi em ambientes muito gays, trabalhava em lojas de shopping, tocava em baladas LGBT, vivia numa bolha”, diz.
“Quando eu entrei na polícia me assustei, fui vítima de todo tipo de intolerância e adoeci. Não há nenhum tipo de suporte, só conselho de agentes falando para eu ficar mais na minha para sofrer menos. Era sempre isso, deixa de ser você que você vai sofrer menos.”
Harrison pediu asilo nos Estados Unidos e vive de trabalhos informais para se manter.
A Polícia Militar do Distrito Federal foi procurada, mas não retornou até a conclusão desta edição.
O Presidente da Renosp (Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública – LGBTI+), o delegado Anderson Cavichioli, disse que se assumir LGBTQIA+ nas corporações traz consequências para agentes de segurança pública.
“Dizer-se publicamente LGBTQIA+ significa retaliação, que você vai ser preterido, que a promoção não sai, escalas abusivas. Nós temos vários episódios. Não sabemos qual o tamanho da população LGBTQIA+ dentro das corporações porque muitas pessoas não se assumem para se proteger. A dinâmica é manter a situação em silêncio para não ser prejudicado”, disse.
Ana Paula Ferri trabalha na perícia criminal de Mato Grosso. Em 2021, ela assumiu ser bissexual e começou a namorar uma colega de trabalho. Desde então, afirma que passou a sofrer perseguições: passou a receber menos demandas e foi excluída de reuniões. Procurada, a perícia oficial de Mato Grosso não respondeu.
Ao pedir para conversar com o superior, Ferri afirma que recebeu como resposta que a situação era algo da sua cabeça. Meses depois a Comissão de Ética do órgão instaurou um procedimento com base em uma denúncia anônima dizendo que ela trocava carícias com a namorada na corporação. Ela nega.
“Fui trocada de setor após essa denúncia anônima, homofóbica que nem apresentou provas. Eu tive acesso negado às câmeras para conseguir provar que nada tinha acontecido. Ninguém leva para frente o que a gente fala, somos oprimidas, é um ambiente machista e homofóbico”, afirma.