SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O cálculo feito pelo governo brasileiro para não colocar de pé uma política de vistos de acolhida humanitária para os palestinos que vivem na Faixa de Gaza, palco da atual guerra Israel-Hamas, foi dominado pelo argumento de evitar “uma nova nakba”.
Reservadamente, interlocutores da diplomacia brasileira afirmam que Brasília evitará dar gás a qualquer medida que possa provocar algum deslocamento em massa da população da faixa de terra adjacente a Israel para nações vizinhas ou outros continentes.
É a ideia, relata um desses interlocutores, de que a “história desaconselha” a abrir brechas para que a emigração massiva possa ocorrer. “Nakba” (catástrofe ou desastre em árabe) é o nome dado à diáspora forçada de palestino no fim da década de 1940, em meio à independência de Israel e primeira guerra árabe-israelense.
Argumento semelhante já foi usado por nações como Egito e Jordânia, fronteiriços a Israel, para não abrir suas fronteiras para os milhares de palestinos em desespero. A recusa se baseava no receio, verbalizado, de que Tel Aviv busca forçar uma expulsão permanente dos palestinos e naufragar a ideia da criação de um Estado palestino.
O tema corre nos corredores de Brasília, mas não é tornado público também pelo fato de o governo Lula já ter aberto rusgas com Israel ao equiparar a resposta do governo de Binyamin Netanyahu em Gaza aos ataques terroristas do Hamas no 7 de Outubro.
O presidente Lula (PT) fará uma visita a Cairo no próximo dia 15, quando se reúne com altas autoridades, como o ditador Abdel Fattah al-Sisi, e depois segue para a Etiópia. O Egito é um dos agentes diplomáticos mais importantes dessa guerra. Afinal, é o único país além de Israel que faz fronteira com Gaza, pela passagem de Rafah.
Ademais, qualquer plano de ofertar residência humanitária aos palestinos, neste momento, seria quase irreal. Haveria um enorme imbróglio para conseguir autorizar a saída dessas pessoas, que teria de ser negociada com Tel Aviv.
Até aqui, o Brasil já repatriou mais de 140 palestinos que viviam em Gaza. Muitos tinham nacionalidade brasileira, alguns deles por terem buscado refúgio no país anteriormente. Uma vez no Brasil, alguns deles foram levados para abrigos de acolhida no interior paulista.
Alguns dos ministros de Bibi, como o premiê de Israel é conhecido, manifestam publicamente o desejo de expulsar palestinos da Faixa. Itamar Ben Gvir, (Segurança Nacional) e Bezalel Smotrich (Finanças), os mais radicais do gabinete e expoentes da ultradireita, apregoam o que chamam de “emigração voluntária” como solução para a guerra.
É o tipo de defesa que fez crescer na comunidade internacional o receio de uma nova nakba.
A informação de que o governo descarta ofertar vistos de acolhida humanitária para os palestinos, adiantada pela coluna de Mônica Bergamo, porém, também refletiu o que alguns especialistas vem descrevendo como uma crise no modelo de acolhida do Brasil.
Ações de acolhida humanitária são previstas pela política migratória brasileira para nacionais de países em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, como conflitos armados ou desastres ambientais. Já foram aplicadas para sírios, vítimas de uma guerra civil; para haitianos, vítimas de um colapso humanitário; e para afegãos, alvos da repressão do Talibã, de volta ao poder desde 2021.
Mas o modelo tem mostrado seus desafios, e por vezes fracassos, nos últimos tempos. O principal ponto de tensão está na garantia da acolhida que realmente é dada a esses imigrantes.
Muitos haitianos que na década de 2010 encontravam trabalho em construções ligadas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016 hoje estão em vagas marginais do mercado de trabalho, sufocados pela economia e pela cotação do dólar, uma vez que a maioria deles precisa também enviar dinheiro para familiares que seguem em Porto Príncipe. Para uma larga parcela, a decisão é deixar o Brasil.
No caso dos afegãos, as cenas de dezenas, ou centenas, deles vivendo no Terminal 2 do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, uma cena que se repete ainda nesta terça (6), mostram a deficiência da acolhida. Sem vagas em abrigo e incentivos para aulas de português e com pouca ou nenhuma perspectiva de inserção no mercado de trabalho, a decisão para a maioria deles também é emigrar.
Defensor público federal e especialista em migrações, João Chaves diz que há um claro “ponto de inflexão” na atual política de acolhida humanitária. “É um instituto em crise e que precisa ser repensado, mas não para extinguir esse tipo de possibilidade, e sim para garantir uma política eficiente, com capacidade adequada de emissão de vistos.”
Como um dos principais desafios, ele menciona a dificuldade de acesso aos vistos. Já há quatro meses afegãos não têm conseguido solicitar um visto –enquanto reformula sua política para essa população, Brasília interrompeu as concessões. No caso dos haitianos, um imbróglio que mistura a dificuldade para conseguir documentos no país caribenho à enorme demanda criou uma fila de milhares de demandantes.
Segundo a reportagem apurou, apenas a demanda por reunião familiar de haitianos (ou seja, o pedido daqueles que já vivem no Brasil para levar seus parentes, em grande parte filhos pequenos, que ainda estão no Haiti) tem uma fila represada de mais de 8.000 nomes.