(FOLHAPRESS) – O uso de inteligĂȘncia artificial pode destravar a descoberta de um novo povo indĂgena que, desde 1988, a Funai (Fundação Nacional dos Povos IndĂgenas) tenta confirmar a existĂȘncia no Mato Grosso.
A tecnologia vem sendo desenvolvida por GeovĂąnio Katukina, como projeto de mestrado em Sustentabilidade pela UnB (Universidade Federal de BrasĂlia). Ele Ă© tambĂ©m chefe da Cgiirc (Coordenação-Geral de Ăndios Isolados e de Recente Contato) da Funai.
AlĂ©m do caso do Mato Grosso, a inteligĂȘncia artificial tambĂ©m jĂĄ identificou indĂcios da existĂȘncia de povos desconhecidos no Amazonas, no Acre e em Roraima.
O sistema criado por Katukina, que ainda nĂŁo foi batizado, usa uma tecnologia capaz de identificar feiçÔes na floresta em imagens de satĂ©lite âfeiçÔes sĂŁo caracterĂsticas da mata, visĂveis do espaço, por exemplo um tipo de vegetação ou um desmatamento. Ele se inspirou no trabalho do pesquisador Robert Walker, da Universidade do Missouri (EUA).
Para rastrear a existĂȘncia de povos, o computador Ă© ensinado, a partir de um banco de dados de imagens, a identificar feiçÔes tĂpicas de uma ocupação indĂgena em meio Ă floresta, como tapiris (palhoças) ou capoeiras (roças).
A måquina também é capaz de perceber padrÔes na movimentação de grupos que costumam mudar seu local de moradia periodicamente.
Foi dessa forma que o robĂŽ conseguiu encontrar sinais de um tapiri na regiĂŁo do Parque Juruena, no norte do Mato Grosso, onde hĂĄ mais de 30 anos a Funai investiga a existĂȘncia de um povo nunca contatado.
“Eu trabalhei por anos com monitoramento de isolados e percebi padrĂ”es de ocupação, comecei a observar os locais onde eles construĂram as habitaçÔes. Se nĂŁo tiver pressĂŁo territorial [ação do homem branco], por exemplo, alguns grupos tĂȘm uma dinĂąmica bem prĂłpria de deslocamento, de como ocupar a regiĂŁo, fazer manejo… foi por meio desses padrĂ”es que a gente começou a criar algoritmos que leem imagens de satĂ©lite”, afirmou Katukina.
“Esse Ă© um registro muito antigo da Funai, tem mais de 30 anos que se faz atividade de localização para tentar encontrar esse grupo, e a gente conseguiu, por meio do algoritmo, encontrar o local onde eles provavelmente estĂŁo neste momento.”
No Ășltimo dia 22, o pesquisador fez um sobrevoo de aviĂŁo sobre o parque e conseguiu visualizar uma capoeira na mesma ĂĄrea onde o satĂ©lite identificou o tapiri.
Atualmente, a investigação sobre a existĂȘncia deste povo isolado estĂĄ na fase chamada de informação em estudo. Ă o segundo passo do procedimento interno para a demarcação de uma terra -o primeiro, Ă© a simples informação da possibilidade da existĂȘncia do grupo.
AtĂ© entĂŁo sem indĂcios mais contundentes da sua existĂȘncia, o processo para a demarcação nĂŁo mudou de fase nos Ășltimos anos. Agora, pode ser que avance.
“A partir do momento em que vocĂȘ confirma a existĂȘncia do grupo, podemos entrar com um processo de restrição de uso [da TI], fazer levantamento e monitoramento para ter a exata noção do tamanho do territĂłrio, começar um grupo de trabalho para finalmente realizar a demarcação”, diz ele.
O algoritmo pode, inclusive, ajudar nessa delimitação. A partir do banco de imagens de satĂ©lite e dos padrĂ”es de locomoção, Ă© possĂvel fazer o movimento inverso: a inteligĂȘncia artificial consegue projetar qual ĂĄrea o povo habitou nos Ășltimos anos.
“A ideia Ă© justamente essa, a partir da localização, fazer o levantamento retrospectivo, onde eles estavam nas Ășltimas dĂ©cadas, onde transitam, para ter uma noção de qual ĂĄrea Ă© deles por direito”, completa.
A ideia, diz Katukina, nĂŁo Ă© que a imagem de satĂ©lite, por si sĂł, sirva para confirmar a existĂȘncia de um povo, mas sim que seja usada para ajudar as equipes de campo. Ao mesmo tempo, a ferramenta pode evitar que os indĂgenas tenham contato com o homem branco durante expediçÔes na mata, por exemplo.
Atualmente, hĂĄ uma grande preocupação dentro do movimento indĂgena para que o isolamento de povos seja preservado, ou seja, que sejam identificados, mas que haja o mĂnimo possĂvel de encontros durante o processo de demarcação territorial.
“Nenhuma tecnologia vai substituir o trabalho de campo. Esse conhecimento de vĂĄrios anos da floresta, dos indĂgenas, de ribeirinhos, para a detecção desses grupos, nenhuma mĂĄquina vai fazer. Mas vejo que Ă© uma ferramenta que pode subsidiar e auxiliar esses trabalhos de campo, para que eles tenham mais efetividade”, afirma ele.
A defesa da tese de mestrado acontecerĂĄ em fevereiro e, pelo menos por enquanto, nĂŁo hĂĄ nenhum acordo para que ela seja utilizada formalmente pela Funai.
Tanto a preservação do isolamento de povos nĂŁo contatados quanto o uso de tecnologia avançada por indĂgenas e indigenistas eram pautas defendidas por Bruno Pereira, que tambĂ©m chefiou a Cgiirc, da Funai, e foi assassinado no Vale do Javari, em junho. Katukina trabalhou com ele.