IGOR GIELOW (FOLHAPRESS) – Os impactos mais imediatos da tragédia decorrente da destruição de uma represa na Ucrânia ocupada pelos russos vão surgindo aos poucos: de água contaminada por agentes químicos e biológicos ao risco de minas flutuando em cidades, passando por uma dramática corrida para salvar cachorros e gatos ilhados.
A represa em Nova Kakhovka, em Kherson (sul ucraniano), explodiu na madrugada de terça (6), dois dias depois do início da contraofensiva de Kiev em pontos dos 1.000 km de frente de batalha contra Moscou, que invadiu o vizinho há 15 meses.
Ambos os lados se acusam pela tragédia, alegando vantagens militares que o adversário poderia auferir com a nova situação. Algumas potências ocidentais, como EUA e Reino Unido, por ora evitam apontar culpados, algo notável dado o apoio delas a Kiev. Outras, como a Alemanha, acusam Vladimir Putin pela ação.
As áreas em torno dos cerca de 100 km do rio Dnieper entre a represa e o mar Negro foram alagadas. Segundo alertou o governo de ocupação russo da maior parte da província de Kherson, campos minados instalados pelo Kremlin ao longo da margem ocidental para onde suas forças se retiraram em novembro foram afetados.
Com isso, minas terrestres podem ter se deslocado, boiando até lugares habitados. A Cruz Vermelha fez o mesmo alerta. “No passado, nós sabíamos onde os riscos estavam. Agora, não. Só sabemos que estão em algum lugar rio abaixo. É com um certo horror que vemos as notícias”, disse à Reuters Erik Tollefsen, chefe da Unidade de Contaminação por Armas da entidade.
Minas podem ficar ativas por muito tempo: em 2015, armamentos do tipo da Segunda Guerra Mundial (1939-45) encontrados sob a água na Dinamarca estavam funcionando. A invasão atual é o maior conflito no continente desde aquele, e a quantidade de minas deitadas de lado a lado é enorme, embora impossível de mensurar agora.
Outros riscos colocados são o da contaminação da água potável das cidades que se abasteciam no Dnieper. Há resíduos de agrotóxicos, 150 toneladas de óleo usado no complexo hidroelétrico destruído, restos de mineração e potenciais patógenos oriundos de cemitérios.
Cerca de 5.000 pessoas dos dois lados do rio foram evacuadas, segundo autoridades locais. Em Nova Kakhovka, que está totalmente sob as águas, as cinco primeiras mortes devido à inundação foram registradas.
O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, visitou a capital homônima de Kherson, desocupada pelos russos em novembro. Ele voltou a criticar a ONU e a Cruz Vermelha, dizendo que “não compreende” por que não há um esforço internacional para ajudar as vítimas da crise –o fato de ser uma zona de guerra dividida entre beligerantes complica bastante trabalhos coordenados.
Mais tarde, o chanceler Dmitro Kuleba anunciou ter chegado a um acordo com as Nações Unidas para enviar ajudam humanitária à região.
Russos e ucranianos seguem se acusando de ataques com artilharia durante os esforços de retirada de moradores, particularmente idosos. Na capital de Kherson, a prefeitura disse que os bombardeios continuaram ao longo desta manhã (madrugada no Brasil). Já o governo de ocupação do outro lado do rio afirmou que ataques ucranianos mataram duas pessoas nesta quinta.
Além da crise humanitária, há uma corrida para salvar pets deixados para trás por donos em fuga das águas. Vídeos em redes sociais mostram cachorros e gatos se agarrando em pedaços de madeira e muros, sendo resgatados por voluntários.
O canal estatal de notícias Suspilne lançou uma campanha para arregimentar ajuda na região. Nesta quinta, ao menos 40 cachorros foram salvos em torno da capital, Kherson. Segundo a coordenadora dos esforços na cidade, Irina Bukhonska, “ninguém vê gatos”. “Se o cachorro consegue nadar, ele tenta se salvar. O gato cai em um estupor, fica parado quando vê a água subindo”, afirmou.
Em Nova Kakhovka, a disputa narrativa da guerra chegou aos bichos. Havia na cidade um zoológico particular com 300 animais de médio porte, e segundo relatos de redes sociais, todos morreram afogados. Já a prefeitura local afirma que todos eles já haviam sido realocados no fim do ano passado. Como quase tudo nesta guerra, a essa altura não é possível determinar quem está certo.
CONTRAOFENSIVA CONTINUA
O conflito, de todo modo, continua. Kiev não admite que iniciou a contraofensiva, que por todos os sinais está na fase de ataques para testar pontos mais frágeis das defesas russas ao longo da frente.
Nesta quinta, o Ministério da Defesa da Rússia afirmou ter repelido mais um desses ataques, agora em Zaporíjia (sul), durante a madrugada. O ministro Serguei Choigu diz que houve quatro incursões com 1.500 homens e 150 blindados, e que os ucranianos teriam recuado após perder 350 soldados e 30 tanques. Os dados de ambos os lados na guerra sempre são inflados, logo não podem ser tomados pelo valor de face.
Zaporíjia, como Kherson e as duas autoproclamadas repúblicas do Donbass (Lugansk e Donetsk), foi anexada ilegalmente por Putin em setembro.
Os russos não controlam, contudo, a faixa norte da região, onde fica a capital regional. Mas têm em suas mãos a usina nuclear homônima, a maior da Europa, que está sob risco agora de perder o abastecimento de água para resfriar os reatores –o reservatório que a abastecia era represado em Nova Kakhovka.
Até aqui, não há risco de acidentes, mas a situação preocupa. Já o abastecimento da Crimeia, feito por um canal construído em 1976 que retirava água do reservatório, por ora segue em nível normal, segundo o governo da península anexada por Putin em 2014.
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