IGOR GIELOW
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Liderar um motim armado contra forças federais da Rússia em plena Guerra da Ucrânia é a mais recente adição ao impressionante currículo de Ievguêni Prigojin, 62, um exemplo vivo da ascensão social no país após o fim da União Soviética, em 1991.
Prigojin nasceu em Leningrado, hoje São Petersburgo, a mesma cidade natal de Vladimir Putin. Órfão de pai, ele caiu logo em uma vida de pequenos crimes, assaltos principalmente, e no fim de 1980 se viu preso para uma sentença de 13 anos.
Acabou solto em 1990, no ocaso do império comunista, sem ter vivenciado a efervescência democrática e caótica da abertura promovida por Mikhail Gorbatchov. Mas aproveitou cada oportunidade na terra de ninguém que a Rússia se tornara.
Passou a vender cachorros-quentes com sua mãe, e logo era dono de uma rede de supermercados, cortesia do ultracapitalismo selvagem vigente. Abriu dois restaurantes, sendo que o mais famoso, o Antiga Aduana, virou um ímã para artistas e políticos de São Petersburgo.
Era o começo dos anos 1990, e um desses políticos era o braço-direito do prefeito Anatoli Sobtchak, um certo ex-espião da KGB chamado Putin. Não se sabe exatamente quando a relação entre eles floresceu, mas supõe-se que o começo foi ali.
O que veio a seguir foi meteórico. O grupo Concord, de Prigojin, começou a crescer e oferecer serviços de alimentação de luxo para dignitários estrangeiros. O hoje rei Charles 3° foi um deles, em 2003, com George W. Bush sendo outro em 2004, recebido por Putin.
Contratos públicos começaram a surgir e Prigojin tornou-se o fornecedor da alimentação no Kremlin, além de toda a rede pública de Moscou. Dali veio o apelido “chef de Putin”. Sua figura sempre foi discreta, apesar de que para seus subordinados, pelos relatos disponíveis, ele é um misto de ditador violento e paizão compassivo.
Seguiu servindo de forma obsequiosa o chefe, como uma foto de 2015 com ele junto à mesa em que jantavam líderes do Brics, inclusive a então presidente brasileira Dilma Rousseff (PT), mostra.
A petista certamente não desconfiava, mas ele já era outra coisa àquela altura. Em 2014, Prigojin fundou o seu Grupo Wagner, uma companhia militar privada, quando isso era proibido na Rússia.
Segundo analistas militares, o grupo começou modesto, auxiliando os separatistas da Crimeia a realizar o referendo não reconhecido pela ONU que levou a península ucraniana de maioria russa a se integrar à Rússia. Logo depois, estava envolvido em combates na guerra civil do leste do país, o Donbass.
O grande golpe para Prigojin veio no mesmo ano em que serviu Dilma: a intervenção de Putin na guerra civil síria. Apesar de a presença russa ser oficial, muito do serviço sujo era feito pelos mercenários, exatamente como Bush havia feito no Afeganistão e no Iraque antes.
Com os irregulares, a responsabilização por eventuais abusos ficava no vazio legal. A operação do Wagner cresceu muito, e ele passou a operar na África, onde se envolveu ou deu consultoria militar em cerca de dez países, Líbia e República Centro-Africana à frente.
Ninguém inventou a roda: países ocidentais ofertam esses serviços mundo afora há décadas. Mas a fama do Wagner como um grupo bem equipado e treinado cresceu. Os segredos, também: Prigojin só admitiu ter fundado o grupo em setembro passado, quando já combatia havia meses na Ucrânia.
Três jornalistas russos que foram à República Centro-Africana investigar suas atividades foram mortos em circunstâncias misteriosas. Em Moscou, o agora proscrito jornal Novaia Gazeta teve uma cabeça de bode cortada entregue em sua porta após publicar reportagem sobre o Wagner.
Segundo um analista militar russo que esteve em recepções com Prigojin, ele é uma figura rude no trato quando não se trata de uma autoridade superior e gosta de se gabar da violência que o forjou no sistema prisional soviético.
O analista também valida o relato de perfis publicados sobre o empresário, de que ele falava em nome de Putin para asseverar sua posição. Ao longo dos anos, contudo, o presidente se afastou do aliado.
A Guerra da Ucrânia mudou tudo, novamente. Prigojin viu suas forças incharem para talvez 50 mil soldados, alimentados pelo recrutamento de condenados, que iam à luta em troca do perdão posterior. Formavam, assim, a proverbial bucha de canhão para ataques diretos quase suicidas.
Mas engana-se quem diz que o Wagner é só isso. Suas forças são consideradas algumas das mais bem treinadas pelos comandantes ucranianos na guerra. Após meses de uma sangrenta batalha, acabaram por tomar a estratégica cidade de Bakhmut, em Donetsk.
Essa importância consolidou a rivalidade do mercenário com os chefes das forças regulares, o ministro Serguei Choigu à frente. Em diversas ocasiões ele fez postagens altamente ofensivas contra a cúpula militar russa, acusando-a de deixá-lo sem munição e de não saber conduzir a guerra.
Há duas semanas, veio a gota d´água, com Putin apoiando a exigência de Choigu que todos os mercenários e voluntários assinassem contrato com a Defesa. Prigojin negou-se e nesta sexta (23) levou sua escalada retórica a um momento de ruptura que poucos poderiam antever.
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