Mesmo antes de ser julgado, marco temporal já atinge comunidades indígenas

BOA VISTA, RR (FOLHAPRESS) – Na manhã do dia 27 de maio, Leirejane Nagelo da Silva, do povo macuxi, recebeu a notícia de que parte do território da comunidade do Morcego, onde é tuxaua (cacica), havia sido cercada e loteada por invasores vindos de um assentamento nos limites da área demarcada.

A comunidade, que fica na Terra Indígena Serra da Moça, em Roraima, sofreu o ataque três dias depois de a Câmara dos Deputados aprovar a urgência para a votação do PL 490, que trata da tese do marco temporal. Menos de uma semana depois, em 30 de maio, os deputados aprovaram o projeto do marco temporal por 283 votos contra 155, em mais uma vitória da bancada ruralista.

O texto ainda precisa do aval do Senado. A tramitação do projeto foi acelerada no Congresso devido à proximidade do julgamento do marco temporal no STF (Supremo Tribunal Federal), marcado para esta quarta-feira (7).

“Eles [invasores] agem como se o PL já tivesse aprovação final e como se o nosso território tivesse, de alguma forma, deixado de ser uma área protegida”, diz Leirejane.

Demarcada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) em 1984, a TI Serra da Moça tem uma área de pouco mais de 12 mil hectares e é habitada por cerca de 1.300 pessoas. Em contradição ao que determina a atual Constituição, essa demarcação deixou de fora recursos essenciais para a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, como florestas, nascentes e rios, algo que as comunidades da região vêm lutando para retificar.

A tese do marco temporal define como terras indígenas apenas aquelas já ocupadas no momento em que foi promulgada a Constituição, em 5 de outubro de 1988.

Para Enock Taurepang, vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), o PL 490 vem para legalizar o apagamento da história dos povos indígenas. “Muitos povos foram dizimados e expulsos de suas terras antes de 1988. O PL 490 nos mata, e o marco temporal finca a cruz em nosso peito”, diz.

No mesmo dia em que invasores colocaram a cerca de madeira no território da comunidade indígena do Morcego, a tuxaua Leirejane e outras lideranças tentaram uma resolução por meio do diálogo.

“Fomos até o local e explicamos aos envolvidos que aquela área pertencia à terra indígena e que, portanto, sua cerca deveria ser retirada”, diz. Ela conta, porém, que os invasores se recusaram a mexer na cerca e usaram em seu discurso uma suposta garantia de direitos que viria da aprovação do marco temporal.

A denúncia da invasão foi feita à Funai, que no dia 29 de maio enviou uma equipe à comunidade do Morcego na tentativa de resolver a questão, mas sem sucesso.

Na manhã desta terça (6), lideranças indígenas voltaram a se reunir com representantes da Funai em Boa Vista. De acordo com Valexon Lins Oliveira Ambrósio, 2° coordenador de tuxauas da região, que participou da reunião, a comunidade fará um dossiê com documentos e mapas da época da homologação que comprovam que aquele território pertence ao povo macuxi.
Procurada, a Funai não respondeu aos pedidos de comentário até a publicação deste texto.

Na avaliação de Ivo Macuxi, advogado indígena e assessor jurídico do CIR, quanto mais demorarem os processos que tratam do marco temporal, mais violência os povos indígenas irão sofrer.

Leirejane, por exemplo, afirma que tem recebido um número crescente de ameaças, em mensagens e ligações telefônicas anônimas.

“A gente não precisa nem mesmo ter um cargo de liderança. Só de nos posicionarmos e tentarmos proteger os nossos territórios já somos visados e ameaçados”, afirma Leirejane.

“A gente vê lideranças sumindo, lideranças sendo mortas. É muito triste. Especialmente no nosso estado de Roraima, onde não temos representatividade política na defesa dos direitos dos povos indígenas”, diz.

RETROCESSOS

Nas últimas semanas, Roraima tem visto aumentar os casos de violência contra indígenas. No último dia 1º, por exemplo, foi encontrado em Boa Vista o corpo da tradutora e intérprete da língua yanomami e liderança do movimento de mulheres indígenas Angelita Prororita Yanomami. O caso é investigado.

A professora de educação indígena Jerusa Ramos da Silva afirma que, após quatro anos de um governo abertamente anti-indígena, a eleição do presidente Lula trouxe nova esperança. Agora, contudo, o sentimento é de apreensão.

“Nós temos visto as invasões chegando, e a gente sabe que isso também está acontecendo em outros municípios”, diz ela, que é tia de Leirejane.

As consequências do marco temporal, porém, vão muito além do que se passa no estado amazônico.

Em declaração feita no dia 25 de maio, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, afirmou que o Congresso vem promovendo um verdadeiro ataque a seu ministério, criado como parte do compromisso do governo Lula com a pauta indígena.

A ministra relembra que, durante a campanha eleitoral, o petista levou a retomada dos processos de demarcação de terras indígenas para o centro do debate, criando uma expectativa internacional de que o Brasil voltaria a ter protagonismo na agenda. Tal expectativa, no entanto, tem sido frustrada pelas tentativas de esvaziamento dos ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Junto às lideranças indígenas que se manifestam em Brasília e em todo o país contra o marco temporal, Ivo Macuxi diz esperar que o STF rejeite a tese do marco temporal. “Esperamos que uma decisão do STF que determine a inconstitucionalidade do marco temporal venha a pressionar o Senado a barrar o PL.”

Mesmo que o projeto seja aprovado no Senado, lideranças como Enock Taurepang dizem confiar que o presidente Lula não irá sancionar a lei.

Enquanto isso, dentro das comunidades, a luta não espera. Para Daniel Nagelo da Silva, irmão de Leirejane, a mensagem àqueles que atacam seus direitos é clara: “Resistimos por 523 anos e, se for preciso, resistiremos mais. Se um guerreiro cair, mil se levantarão”.

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