SÃO PAULO, SP, RIO DE JANEIRO, PORTO ALEGRE, RS, MANAUS, AM E RECIFE, PE (FOLHAPRESS) – Brás Pereira, Sandra Rosário, Alice Queiroz, Claudiomiro de Araujo e Miriam Correia. De diferentes cidades, idades e histórias de vida, eles estão entre as 700 mil vítimas da pandemia de Covid no Brasil.
Além da causa, a morte deles tem em comum o fato de ainda reverberar nas vidas de seus familiares e amigos.
Os pais de Alice, por exemplo, não pensam mais em ter filhos. A filha de Claudomiro tem crises de pânico. E o filho de Sandra ficou morando na casa da tia, que também perdeu o marido para o coronavírus e hoje depende de cestas básicas.
Veja a história deles.
*DEIXOU DE LUTO NÃO SÓ A FAMÍLIA MAS UM BAIRRO
Brás Pereira, 77, tinha muito medo de pegar Covid. Cuidadoso, o jornalista adotou com rigor o uso de máscaras para se proteger da infecção e evitava sair de casa. Além disso, sua vacinação estava em dia contra a doença.
“Do bairro dele [no Imirim], foi um dos primeiros a tomar a vacina. Ele tomou todas as doses”, diz Marcia Martins de Souza, nora do jornalista.
Pereira era tão regrado com a imunização que já havia tomado a mais recente atualização do fármaco, a bivalente, disponibilizada no fim de fevereiro. Porém, um dia depois da nova aplicação, ele começou a sentir alguns sintomas e tomou medicamentos, afirma Cassius Clay, 51, filho de Brás.
De início, imaginava-se que fosse reação à vacina. Mas na manhã do dia 4 deste mês, um sábado, o quadro se agravou, com Brás sentido falta de ar. Ele foi levado a um centro médico, onde constataram que o pulmão dele estava muito comprometido, com saturação muito baixa. Foi submetido a um teste para Covid e transferido a um hospital.
O resultado foi positivo para coronavírus. No hospital, não havia vaga disponível na UTI e mantiveram Brás na emergência. Esperava-se que um leito na unidade intensiva fosse providenciado até a segunda (6). No entanto, ele não resistiu e morreu no domingo. “Foi tudo rápido”, diz Cassius.
O histórico do jornalista o colocava em um grupo de risco para a doença. Além de ser idoso, tinha problemas de pressão e diabetes.
Não só seus familiares enfrentam o luto mas também o bairro do Imirim, na zona norte paulistana.
Brás era muito ativo na comunidade, buscando melhorar a situação do local desde que se mudou para São Paulo -ele nasceu na cidade de Machado, em Minas Gerais- e fixou residência no bairro.
“Se falar Brás Pereira, todo mundo sabe quem é”, conta a nora, que, assim como a comunidade, tenta lidar com a perda.
CONTRAIU O VÍRUS POUCO APÓS COMPLETAR 2 ANOS
“Ela não conseguia se expressar verbalmente e fisicamente, mas o sorriso dela era no olhar e encantava a todos.” Essa é a lembrança ainda viva na memória do bancário Alcemir Amaral Queiroz Júnior, 42, de sua única filha.
Alice Paixão Queiroz foi a primeira vítima infantil da Covid confirmada em Campos dos Goytacazes, no interior do Rio de Janeiro, em 30 de janeiro de 2022 -ela completara dois anos no dia 7 do mesmo mês. O óbito foi notificado ao Departamento de Vigilância Epidemiológica da prefeitura em 1º de fevereiro daquele ano.
De acordo com o pai, Alice era portadora de uma doença genética rara, a gangliosidose GM1 tipo 1.
Por causa do tratamento que seguia desde os quatro meses de idade, a menina recebia atendimento médico domiciliar. Segundo Alcemir, dois dias após uma técnica de enfermagem apresentar sintomas gripais, a filha teve queda na saturação, com dificuldades para respirar, e febre. No dia seguinte, ela foi levada ao hospital e deu entrada na UTI.
Os testes de Alice e dos pais deram resultado positivo para coronavírus. Os pais desenvolveram sintomas leves. “Já a Alice teve o pulmão tomado em uma velocidade surpreendente. Ficou nove dias intubada e não resistiu. Tentamos de tudo”, diz Alcemir.
Ele lamenta que, à época, não havia vacina disponível para os menores de cinco anos -a imunização de crianças de 6 meses a 2 anos começou na cidade em novembro de 2022.
“A minha esposa e eu já tínhamos tomado as duas primeiras doses e estávamos aguardando a terceira. Acho que a minha filha não teria passado por sofrimento se tivesse tido essa chance”, afirma o pai.
“Sempre que vejo um pai ou uma mãe falando que não vai levar seu filho para tomar vacina, conto a história da minha família e reforço o mal que faz essa doença. Você não tem noção do que é ver uma filha no leito de UTI, intubada e depois vê-la morrer. É muito triste”, diz Alcemir.
“Nós nem pensamos em ter mais filhos porque é um trauma muito grande essa perda. Agora, nos concentramos em alertar em relação aos riscos com a Covid e apoiar famílias de crianças que têm a mesma comorbidade da Alice.”
AVISOU QUE NÃO RESISTIRIA AO VÍRUS
Assim que a pandemia ganhou o noticiário em 2020, Claudiomiro de Araujo, então com 50 anos, chamou a mulher Simone e a filha Mariana e vaticinou: “Se eu pegar isso, tchau”.
As duas sabiam que ele tinha razão e montaram por quase dois anos uma operação para impedir que o vírus entrasse na casa da família, em Cidreira, cidade de quase 17 mil habitantes no litoral gaúcho.
Devido a problemas renais, o bombeiro aposentado era imunodeprimido, o que o tornava mais vulnerável.
“Meu pai não saía de casa. Quando eu ou a minha mãe tínhamos de sair, usávamos duas máscaras. Entrávamos em casa e corríamos para tomar banho. A gente mora de frente para o mar e riam de nós caminhando na praia de máscara. Tudo para o pai não pegar”, conta Mariana de Araujo.
Os três acabaram infectados no começo de 2022, quando a ômicron levou a um aumento de casos no país. E bem quando Claudiomiro se mostrava mais feliz e falante.
Até hoje, a família desconhece como ocorreu a transmissão, dado que as festas de final de ano e o aniversário de Mariana, em 9 de janeiro, foram só entre os três.
Conforme o aposentado previu, o quadro de saúde de Simone e Mariana melhorou, mas o dele piorou -os três estavam com a vacina em dia.
Em 20 de janeiro, com dificuldade para respirar, ele foi levado de ambulância até o posto de saúde. Foi imediatamente intubado e transferido ao Hospital de Tramandaí.
Morreu oito dias depois, aos 52 anos.
“Meu pai entrou em uma ambulância e eu não pude entrar junto. Não pude vê-lo no hospital nem no caixão, porque estava lacrado. Isso é o que mais me quebra”, diz Mariana, 20.
Desde a perda do pai, ela diz sentir raiva de quem menospreza a Covid ou debocha da doença. Hoje vivendo em Porto Alegre, onde começou a faculdade, a jovem está em tratamento psicológico.
“Tenho medo de me infectar e tenho crises de ansiedade e de pânico. E a saudade, né? Eu convivia o dia inteiro e cuidava do meu pai desde os seis anos. É uma saudade dele que não cabe no peito.”
PASSOU TRÊS MESES INTERNADA
Logo no começo da pandemia, Jacilene Silva de Souza, 48, perdeu o marido para a Covid. Quando Gerson Martins, 42, encontrou uma vaga num hospital da rede pública estadual em Manaus, em abril de 2020, era tarde demais.
“Num dos hospitais para onde o levaram, os pacientes estavam dividindo oxigênio”, diz ela. “Quando achamos vaga, o pulmão já estava comprometido. Ele ingressou às 10 horas da noite e morreu à 1h do dia seguinte.”
A mulher se viu sem renda em casa. As filhas tinham, naquele momento, 13 e 17 anos de idade.
Manaus ainda viveria a fase mais traumática e representativa da pandemia no país, com a crise de escassez de oxigênio nos hospitais da rede pública, em janeiro de 2021. Pacientes com Covid morreram asfixiados, diante do previsível esgotamento do insumo nas unidades de saúde.
No fim daquele mesmo ano, Jacilene acolheu em casa a cunhada Sandra Maria Rosário, 56, viúva de um irmão, e o filho dela, de 19 anos, oriundos do interior do Amazonas.
Pouco depois, a cunhada se infectou com o coronavírus e ficou bastante debilitada. O desespero com um quadro grave da doença voltou a fazer parte do cotidiano de Jacilene.
“Ela não se levantava da cama e precisou de hospitalização. Ficou meses internada.”
Sandra teve Covid em janeiro de 2022, segundo informação do Ipeds (Instituto de Pesquisa e Ensino para o Desenvolvimento Sustentável), uma organização sem fins lucrativos em Manaus que desenvolveu um projeto para ajudar crianças e adolescentes que ficaram órfãos em razão da pandemia.
Em abril, depois de três meses de hospitalização, Sandra morreu na capital amazonense devido a complicações associadas à doença.
O filho dela permaneceu na casa da tia.
Até hoje, as cestas básicas distribuídas pelo Ipeds são indispensáveis na casa de Jacilene. A filha mais velha arrumou um emprego, porém a renda é insuficiente para o sustento de todos.
INTERNADA COM O MARIDO, SÓ ELE SOBREVIVEU
Após quase dois anos, a morte da professora aposentada Miriam Campelo Correia ainda deixa marcas na família.
A evolução rápida da Covid e o sepultamento com caixão fechado ainda estão na memória dos parentes da educadora.
Miriam era professora aposentada da rede estadual de ensino de Pernambuco. Foi morar em Alagoas, estado vizinho, após mais de 30 anos de sala de aula.
Ela vivia com o marido em uma casa na praia de Peroba, em Maragogi.
A família diz acreditar que ela contraiu o vírus em Olinda, na região metropolitana do Recife, depois de ter contato com a irmã, que também teve Covid. Ficou dois meses intubada e sobreviveu.
De volta a Alagoas, Miriam e o marido foram hospitalizados. Apenas ele se recuperou. “Ela não conseguiu sair da máscara de oxigênio, foi para a intubação, ficou com pressão alta e a diabetes alterou demais também”, afirma Gleice Mariano, sua filha.
Antes de ser internada, tomou, por recomendação médica, azitromicina e ivermectina, ambos sem comprovação científica de benefícios no tratamento de Covid. E não chegou a se vacinar. “Quando foi internada, liberou para a idade dela”, lembra Gleice.
A docente aposentada ficou de quatro a cinco dias internada. E, no dia 31 de março de 2021, morreu aos 62 anos, em Porto Calvo, no interior de Alagoas, a 96 km de Maceió.
“Foi uma das coisas que mais me traumatizaram”, afirma a filha. “Reconheci o corpo da minha mãe de longe, não pude chegar perto, não pude tocá-la.”
A Covid impôs restrições ao sepultamento, feito no mesmo dia da morte da aposentada. O enterro ocorreu em São José da Coroa Grande, no litoral sul pernambucano.
“Caixão fechado [no sepultamento]. Foram menos de dez pessoas porque era longe e tinha as restrições”, recorda Gleice. “Foi terrível, uma das piores coisas. Meu irmão ficou desesperado, queria vê-la de todo jeito e não tinha como.”