ANA BOTTALLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A explosão de novos casos na China desde que as medidas de restrição conhecidas como “Covid zero” foram retiradas pelo governo gera preocupação para o Brasil e o mundo.
Segundo especialistas, o cenário segue sendo o mesmo observado em outras ondas da pandemia: a alta taxa de transmissão do vírus é o pano de fundo para a geração de mais mutações e, com elas, novas variantes potencialmente preocupantes.
A situação que se repete é um alerta de que a pandemia ainda não chegou ao fim, reforçam.
Em razão disso, países como Estados Unidos e União Europeia já anunciaram que vão exigir teste negativo de Covid de todos os viajantes vindos da China a partir de janeiro.
Para o virologista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e do CT Vacinas (centro tecnológico de vacinas, ligado à federal mineira) Flávio Fonseca, o risco de surgir uma nova variante no país asiático com possibilidade de espalhamento para o resto do mundo é grande.
“É um temor real, porque as condições com certeza são favoráveis para o surgimento de uma nova variante”, explica. “Como o vírus busca se replicar, e é por meio da replicação que surgem novas variantes, em uma população suscetível pode aparecer uma forma com maior agressividade, ainda não sabemos.”
Em um país com baixas coberturas vacinais e dados oficiais de infecções e óbitos nebulosos, é difícil até mesmo saber a real dimensão da nova onda.
Fernando Spilki, virologista coordenador da Rede Corona-ômica BR, ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação, ressalta que a retirada das medidas expôs um problema em termos de capacidade de testagem, com alguns dados apontando que o país pode ter até 37 milhões de novas infecções por dia e mais de 5.000 óbitos diários.
Em números oficiais, porém, o governo chinês divulgou menos de 4.000 casos no último dia 22 e reduziu o número de mortes oficiais na última semana, passando de 5.242 para 5.241 mortos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, porém, o país já registrou pelo menos 31 mil mortes desde o início da pandemia até o último dia 29 de novembro.
“Em contingentes populacionais tão grandes quanto a China é muito difícil manejar a população. Agora, com a retirada [das medidas], vemos que até mesmo para megalópoles parecidas a forma como o governo acompanhava os casos é muito diferente”, diz.
A diferença entre os números oficiais e os contabilizados por órgãos independentes se dá pela mudança recente de critério da classificação de uma morte por Covid na China, que considera apenas aquelas relacionadas a problemas respiratórios diretamente associados ao vírus.
Segundo o governo chinês, a mudança ocorreu porque a ômicron é menos agressiva nas vias respiratórias inferiores (pulmões e traqueia), provocando principalmente uma infecção nas vias superiores que pode gerar sintomas próximos aos da gripe.
Em relação aos casos, a China só contabiliza os resultados positivos com testes RT-PCR, que buscam o material genético do vírus no organismo, e muitos realizam os testes de antígeno em casa, que não são oficialmente reportados.
A cobertura vacinal da população também é um agravante, com apenas dois terços dos idosos com mais de 60 anos vacinados com dose de reforço. As vacinas utilizadas na China são principalmente a Coronavac, da farmacêutica chinesa Sinovac, e a Sinopharm, ambas de vírus inativado, o que pode gerar uma menor proteção contra a infecção.
“Agora está em torno de 67% de pessoas vacinadas com reforço, embora com duas doses [esquema primário] ultrapasse 89%, mas são vacinas com um grau de eficácia, principalmente para o bloqueio de variantes, mais baixo, então é um contexto que pode ser importante para novos surtos globais”, afirma Spilki.
Em razão disso, muitos chineses agora estão viajando para Macau para receber os imunizantes da Pfizer ou Moderna, de tecnologia de RNA.
“A China investiu em uma política de lockdowns prolongados e intensos no lugar de vacinação elevada. Isso atrasou, mas não impediu as ondas de Covid, que agora vêm com muita intensidade e podem refletir no resto do mundo”, diz Fonseca.
Para Raquel Stucchi, infectologista e pesquisadora da Unicamp, a política de usar somente vacinas de vírus inativado acabou gerando uma imunidade menor na população. Diversos estudos apontam que a vacinação heteróloga ou chamada mistura vacinal (como reforço de vacina de RNA em quem recebeu duas doses de vacinas inativadas) gera uma resposta imunológica mais forte e duradoura.
Segundo ela, a alta de casos pode levar também ao desabastecimento de insumos médicos no mundo. “Sabemos que a China é uma potência farmacológica, sendo a principal produtora de matéria-prima para medicamentos, vacinas e até testes, então se eles precisam mais para consumo interno pode restringir o envio para outros países”, diz.
Apesar de críticas ao planejamento de Covid zero chinês, outros especialistas lembram que a estratégia nacional possibilitou uma condução até melhor da pandemia nos últimos três anos do que em diversas partes do mundo.
Para a cientista política e pesquisadora da USP Lorena Barberia, a mudança da condução do governo pode até descentralizar as medidas de controle, mas não houve um abandono por completo.
“É importante contextualizar que por três anos eles mantiveram uma constância na forma de rastrear, isolar e testar os contatos. A política foi muito diferente daquela de países ocidentais, e agora, em uma situação epidemiológica diferente, eles entenderam que a mudança de critério era necessária”, diz ela, que também vê com viés a cobertura midiática sobre o gigante asiático.
“Em termos populacionais, o continente africano tem a mesma quantidade de pessoas, e não há muita transparência também dos dados de diversos países, sem contar a desigualdade vacinal. A preocupação de novas variantes surgirem é verdadeira, mas há também muito pouco conhecimento sobre a forma como a pandemia seguiu por lá.”