PHILLIPPE WATANABE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O bolso do lendário Isaac Newton, aparentemente, conheceu e foi preenchido, ao menos em parte, pelo ouro brasileiro. Em seu período na Casa da Moeda, em Londres, o físico teria lucrado com o metal precioso proveniente do Brasil e derivado de trabalho escravo.
Tal conexão foi apontada no livro recentemente lançado “Ricardo’s Dream: How Economists Forgot the Real World and Led Us Astray” (como os economistas esqueceram o mundo real e nos desencaminharam), de Nat Dyer.
A obra busca fazer uma análise da economia, como ciência social que busca capturar, em modelos matemáticos, interações e relações humanas, e os problemas envolvidos com essa forma de pensar. Para isso, o autor parte da história e das ideias de David Ricardo, economista clássico de destaque ao lado de nomes como Adam Smith e Thomas Malthus, e um dos primeiros, diz Dyer, a considerar a economia como uma ciência tal qual a matemática.
Voltando a Newton, o contato dele com o ouro brasileiro, segundo o autor do livro, ocorria no momento em que as moedas de ouro eram cunhadas na Casa da Moeda britânica.
E qual poderia ser a relação de um pesquisador do quilate de Newton com a Casa da Moeda?
Bom, Newton não ficou toda a sua vida como pesquisador, em Cambridge. Na verdade, ele passou mais tempo vivendo em Londres, onde trocou sua posição de professor de matemática na Universidade de Cambridge por um cargo na Casa da Moeda, de 1696 até 1727, ano de sua morte. Newton dedicou boa parte da carreira financeira à instituição britânica como “master of the mint”, algo como mestre da Casa da Moeda.
Em tal posto, o pensador recebia um valor a cada moeda cunhada. Com quantias de ouro vindo de Portugal e entrando na Inglaterra –devido ao elo comercial entre os países, especialmente ao se considerar o Tratado de Methuen, acordo relacionado a tecidos ingleses e vinho português-, é de se esperar que Newton conseguisse quantidades de libras nada desprezíveis.
Em sua transição de carreira –para usar termos mais atuais–, Newton saltou de uma remuneração anual em Cambridge de £100 para £3.500, valores hoje equivalentes, respectivamente, a £36 mil e £1,26 milhão. Segundo a obra, quando morreu, o patrimônio do pensador chegava a £32 mil, ou £11,5 milhões, em valores atuais.
Mas como saber que o que passava pela Casa da Moeda ou chegava aos bolsos de Newton era ouro brasileiro?
Bom, o próprio Newton afirmou isso, de acordo com uma passagem de seus escritos, presentes no Newton Project –iniciativa que disponibiliza escritos do pensador digitalizados.
“Não podemos obter ouro senão das Índias Ocidentais [América do Sul e Central] pertencentes à Espanha e a Portugal”, escreveu o pensador, em 1701.
“Veio de Portugal e um pouco da Jamaica” o ouro cunhado de 1702 até 1712, escreveu Newton em 1715. Por fim, em outro momento, o físico escreveu, em uma correspondência de 1717 ao Tesouro, que o oeste da Inglaterra estava “cheio de ouro” de Portugal, escreve Dyer, em sua obra.
Hoje já é de amplo conhecimento que o ouro brasileiro, que acabava em mãos inglesas através de Portugal, era produto de mãos de pessoas negras escravizadas. Mas a pergunta que pode surgir ao se deparar com a conexão entre Newton, Brasil, ouro e escravidão é: ele sabia o que envolvia sua própria riqueza e a de seu país?
Segundo Dyer, muito provavelmente.
“Podemos estar quase certos de que Newton sabia que o ouro que ele estava cunhando era produto da escravidão, mas não há evidência textual direta disso”, diz Dyer à Folha de S.Paulo.
O enriquecimento britânico associado ao tráfico de escravos não era exatamente um segredo , sim, era de conhecimento das elites de Londres, aponta o autor.
“Basta olhar para algo como o Upper Hall do Painted Hall, em Greenwich, Londres -concluído entre 1707 e 1726 [período em que Newton estava vivo]- para ver o rei George 1º da Inglaterra descansando sobre um globo com o oceano Atlântico voltado para fora, moedas de ouro caindo do céu acima dele, e no teto acima, figuras representando ‘Américas’, ‘África’ e ‘Ásia’ prestando homenagem. Para ver como era óbvio para as pessoas da época que a riqueza inglesa se baseava no comércio colonial e no poder naval”, diz o autor.
Dyer se apoia também nas palavras de outra estudiosa de Newton, a historiadora de ciência Patricia Fara, da Universidade de Cambridge. “Newton sabia que a prosperidade do país dependia do comércio triangular de pessoas escravizadas”, afirma a pesquisadora, em seu livro “Life After Gravity: Isaac Newton’s London Career” (a vida depois da gravidade: a carreira em Londres de Isaac Newton).
Além dessa conexão entre Newton e o Brasil, há outra ligação amplamente conhecida do físico com finanças e dinheiro relacionado ao tráfico de pessoas negras escravizadas.
“É amplamente conhecido que Newton investiu na South Sea Company, uma empresa que traficava escravos africanos. Embora ele tenha perdido dinheiro com esse investimento, isso, evidentemente, não serve como desculpa”, diz à Folha James Gleick, finalista do prêmio Pulitzer, em 2004, pela biografia “Isaac Newton”, que chegou a ser publicado no Brasil pela Companhia das Letras e pela Casa das Letras.
A Folha de S.Paulo buscou outros pesquisadores com conhecimento sobre a vida do histórico teorizador da gravidade. Em geral, a reação foi de uma certa surpresa sobre a possível ligação entre Newton e o Brasil.
Gleick, por exemplo, diz não conhecer conexões pessoais de Newton com a escravidão no Brasil, porém afirma que, “de forma geral, o papel britânico no tráfico transatlântico de escravos é notório”.
Eduardo Valadares, professor de física da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e autor do livro “Newton: A Órbita da Terra em um Copo D’água”, da editora Odysseus, afirma à Folha que houve uma sobreposição da vida de Newton e do ciclo do ouro no Brasil, mas que o apogeu da exploração do metal precioso foi posterior à morte do pesquisador.
“A fundação de Ouro Preto foi em 1811. Como é bem sabido, o ouro era extraído nas minas por escravos vindos da África. Um deles e talvez o mais famoso, Chico Rei, chegou ao Brasil em 1740”, afirma Valadares. “A partir destes dados, acho que Newton teve pouco tempo de vida para ficar rico com o ouro procedente do Brasil.”
Breno Arsioli Moura, professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) e que tem como foco de pesquisa história da ciência, diz que não haver dúvidas de que a Inglaterra estava cheia de ouro brasileiro.
“Quando [Newton] ingressou na Casa da Moeda, estava em curso um processo de recunhagem de moedas. Estavam em circulação muitas moedas antigas, o que facilitava as falsificações, por exemplo”, afirma Moura.
A década em que assumiu o cargo na Casa da Moeda foi um tanto conturbada para Newton, diz Moura. “Foi também um período em que se afastou consideravelmente da pesquisa que poderíamos dizer científica, ou seja, não produziu nada de essencialmente novo no período.”
“Não tenho dúvidas de que Newton possa ter enriquecido nesse processo”, afirma Moura.
A historiografia de Newton tem sido revisitada nas últimas décadas, segundo o pesquisador da UFABC. E os novos olhares trazem ângulos anteriormente ignorados de sua vida, acrescentando outras camadas à figura histórica que conectou a queda de uma maçã de uma macieira à gravitação universal.
Leia Também: Trump, risco fiscal e Selic elevada devem manter estrangeiro afastado da B3 em 2025