Pesquisadores localizam cemitério de escravizados em Salvador e defendem escavações

(FOLHAPRESS) – Uma das mais importantes praças de Salvador, Campo da Pólvora abriga o Fórum Rui Barbosa, uma estação de metrô e está a poucos metros da Arena Fonte Nova. Foi criada no século 17 como Campo do Desterro e sediou por um tempo a Casa da Pólvora, onde eram fabricadas munições.

 

Em seu entorno, foi criado no século 18 o cemitério do Campo da Pólvora, que por mais de um século foi destino dos corpos de escravizados, indigentes, criminosos, indigentes, suicidas e rebeldes de levantes como a Revolta dos Malês, que completou 190 anos neste sábado (25).

Fechado em 1844, o cemitério dos escravizados sumiu na paisagem urbana e foi esquecido enquanto memória da cidade. Mas sua provável localização foi descoberta após 180 anos.

O perímetro foi localizado por meio de um cruzamento de mapas e relatos históricos identificados pela pesquisadora Silvana Olivieri, doutoranda em Urbanismo na UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Os indícios apontam que o antigo cemitério estaria abaixo do estacionamento do Complexo Pupileira, no bairro de Nazaré. O imóvel tombado pertence à Santa Casa de Misericórdia da Bahia e abriga um museu, uma faculdade e um dos cerimoniais mais concorridos de Salvador.

Após a descoberta, Silvana Olivieri e o professor Samuel Vida, coordenador do programa Direito e Relações Raciais da UFBA, encaminharam um dossiê ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no qual apontaram o provável perímetro do cemitério.

O documento veio acompanhado de um pedido de apoio institucional para realizar uma pesquisa arqueológica no local. Um grupo de arqueólogos se dispôs a fazer gratuitamente os primeiros trabalhos de escavação no possível local do cemitério, caso sejam autorizados.

“O achado desse cemitério, no momento que a gente realmente encontrar as ossadas, tem o potencial de estremecer as bases coloniais racistas dessa cidade. A gente está diante de um caso de apagamento brutal”, afirma Silvana Olivieri, que vai dedicar um capítulo da sua tese de doutorado ao caso.

O cemitério do Campo da Pólvora foi um dos primeiros erguidos na cidade. Na Salvador do período colonial, os corpos dos mortos eram enterrados no interior ou no adro das igrejas católicas.

O costume era tão disseminado que quando, em outubro de 1836, o governo editou uma lei proibindo os enterros nas igrejas, as irmandades católicas se rebelaram, resultando em uma revolta que ficou conhecida como Cemiterada.

No livro “A Morte é uma Festa”, o historiador João José Reis, professor da UFBA, aponta que o cemitério do Campo da Pólvora possuía valas comuns e superficiais, o que deixava os corpos a mercê de animais. Na época, cabia aos responsáveis pela limpeza pública enterrar esses cadáveres.

“O enterro de africanos pagãos equivalia, sem meias palavras, a remoção de lixo. A preocupação em enterrá-los bem não objetivava dar-lhes sepultura decente, mas evitar a disseminação de doenças”, afirma Reis no livro.

Com o crescimento da população de cativos, o cemitério se tornou destino da maioria dos corpos dos escravizados mortos, fossem eles pagãos ou cristãos. Em 1817, por exemplo, ali foram enterrados 113 africanos que não sobreviveram à travessia de um navio tumbeiro.

Também foram enterrados neste cemitério os restos mortais dos líderes da Revolta dos Búzios, que foram enforcados e esquartejados em 1799, e líderes da Revolução Pernambucana fuzilados em Salvador.

Com o tempo, o terreno passou a ser encarado como um problema de saúde pública, sendo fechado em 1844. Um novo cemitério foi inaugurado em 1836 pela Santa Casa e se tornou um dos mais tradicionais de Salvador: o Campo Santo.

A busca pelo antigo cemitério do Campo da Pólvora se une a um esforço de pesquisadores e ativistas para encontrar vestígios de locais onde foram enterrados escravizados pelo país.

O cemitério dos Pretos Novos, por exemplo, foi descoberto acidentalmente em 1996 no Rio de Janeiro. Em 2018, foi a vez do cemitério de Santa Rita reaparecer no Rio de Janeiro em meio à implantação do VLT.

Em São Paulo, uma pesquisa arqueológica encontrou ossadas na área onde funcionou cemitério dos Aflitos entre 1775 até 1858, no bairro da Liberdade. Um imóvel foi demolido e desapropriado em 2022 para construção de um memorial que resgata a história negra do bairro.

Em Salvador, ativistas estão engajados na defesa das escavações na Pupileira. Em novembro, uma ação colou cartazes no entorno do cemitério que indicam a sua existência na região.

O Iphan já iniciou as tratativas com a Santa Casa para autorização das escavações. Uma nova reunião foi marcada para a próxima quarta-feira (29) e vai debater o assunto com a presença do Ministério Público.

A Santa Casa de Misericórdia da Bahia afirma que prima pela preservação da cultura e da história, mantendo um centro de memória e um dos museus mais visitados da Bahia. Em nota, disse que ratifica sua disponibilidade para colaborar no que for possível com esta iniciativa.

Entre líderes do movimento negro, ativistas e pesquisadores, a ideia é trabalhar para retirar da invisibilidade o antigo cemitério, propondo construção de um memorial em homenagem aos seus mortos.

“É muito chocante que um cemitério que tenha funcionado por cerca de 150 anos e não tenha merecido a atenção das instituições estatais. Isso é revelador de um desprezo e de desconsideração pela memória negra”, afirma o professor Samuel Vida.

 

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