IGOR GIELOW (FOLHAPRESS) – Oitenta anos e meros 380 km separam as realidades encaradas por Vladimir Putin nesta quinta (2), quando o presidente russo comandará o evento de aniversário da vitória soviética sobre os nazistas em Stalingrado enquanto suas tropas buscam um avanço estratégico em Bakhmut, no leste da Ucrânia.
Ninguém sabe o tom do discurso de Putin na atual Volgogrado, a cidade às margens do rio Volga no russo original, mas paralelos forçados entre o heroísmo quase suicida do regime de Josef Stálin em 1943 e a agressão não provocada ao vizinho em 2022 quase certamente estarão na ordem do dia.
O líder sacralizou o calendário de eventos da Grande Guerra Patriótica, como a Segunda Guerra Mundial é chamada em sua linha do tempo russa, que começa em 1941 com a invasão dos alemães na maior ofensiva da história. Até então, Stálin e Adolf Hitler, o nazista em marcha desde de 1939, eram desconfiados aliados.
E não há data maior do que o 2 de fevereiro de 1943, quando o marechal Friedrich Paulus desobedeceu a Hitler e entregou-se aos soviéticos. Ele e outros 91 mil prisioneiros simbolizavam a maior derrota até então da Alemanha nazista –e o acionamento do rolo compressor comunista que só iria parar sobre a chancelaria em Berlim, pouco mais de dois anos depois.
Foi o ponto de virada da guerra, ainda que Hollywood compreensivelmente busque vender que a honra foi do Dia D, liderado pelos Aliados ocidentais em 6 de junho de 1944. Não para os russos. Nas estradas que dão em Volgogrado, assim chamada desde a desestalinização em 1961, o antigo nome voltou a figurar e placas comemorativas, além de valer oficialmente em seis feriados militares.
Já há sinais da ligação que deverá ser feita por Putin, que tem gosto por visões peculiares da história. Segundo o jornal Kommersant, o partido governista Rússia Unida foi orientado a estabelecer uma ponte direta entre o esforço pago em sangue há 80 anos e o incerto número de baixas russas agora -que o Ocidente coloca em torno de 100 mil, entre mortos e feridos, ante talvez o mesmo contingente ucraniano.
Putin e seu governo têm descrito, desde o início da guerra, o governo de Kiev como neonazista, visando um público doméstico suscetível à memória história: 70% dos russos perderam algum parente no conflito entre 1941 e 1945. A retórica baixou um pouco ao longo de 2022, mas o presidente voltou à carga na sexta (27), dia internacional de lembrança do Holocausto.
É um despropósito político, que se aproveita do fato de que há setores da política e das forças ucranianas com inspiração neonazista, o que tem ressonância na elite russa.
Mesmo detalhes como o emprego por Kiev de cruzes que lembram a insígnia alemã da Segunda Guerra em seus tanques ou o fato de que blindados germânicos serão usados contra os russos agora integram guerra de propaganda. De seu lado, os ucranianos comparam frequentemente Putin a Hitler.
Nada disso, contudo, deveria tisnar a lembrança do que ocorreu no sul da Rússia em 1943. Os números brutais de Stalingrado se impõe como sombra sobre toda a história do combate, sendo amplamente considerada a batalha mais sangrenta já travada.
As estimativas mais recentes colocam em até 850 mil o número de baixas alemãs, talvez metade de mortos. Já os soviéticos pagaram com 1,3 milhão de baixas, 480 mil de soldados mortos e talvez mais 200 mil de civis falecidos -metade de sua população pré-guerra, hoje em cerca de 1 milhão de pessoas.
São dados inconfiáveis, mas que dão a proporção da hecatombe que será relembrada por Putin. No auge do embate, no fim de 1942, havia cerca de 1 milhão de soldados de cada lado de uma área exígua às margens do Volga. “Rattenkrieg”, a guerra dos ratos como diziam os alemães, todos se esgueirando por ruínas, esgotos, esconderijos.
Tais condições horrorosas serviram a filmes sobre a batalha, como os muito bons “Stalingrado” alemão (1993) e russo (2013), e o aguado pan-ocidental “Círculo de Fogo” (2001). Livros são ainda mais numerosos, com a obra-prima do historiador britânico Antony Beevor, “Stalingrado – O cerco fatal” (Ed. Record, fora de catálogo), à frente.
No centro da tragédia, a soberba de Hitler e a rixa pessoal entre o ditador nazista e o tirano soviético. Stalingrado, antiga Tsarítsin até ser renomeada em 1925 para homenagear o chefe do Kremlin (cidade de Stálin, em russo), era uma etapa apenas intermediária de uma campanha mais importante.
Após varrer a Ucrânia em 1941, os nazistas estavam postados nas frentes hoje ocupadas pelos homens de Putin e Volodimir Zelenski, capitaneados pelo 6º Exército, uma força de elite então com 330 mil soldados. Mas Moscou e Leningrado (São Petersburgo hoje) não caíram.
Para piorar, o esforço de guerra já cobrava seu preço e o petróleo necessário para prosseguir, retirado da aliada Romênia, estava se tornando escasso. A solução em Berlim foi investir tudo na tomada dos campos petrolíferos soviéticos do Cáucaso, da Tchetchênia ao Azerbaijão.
A ofensiva Estojo Azul começou em 28 de junho, e avançou tão rapidamente que Hitler achou correto dividir suas forças: os homens de Paulus iriam tomar Stalingrado, enquanto divisões de tanques rumariam aos campos de petróleo de Baku. Isso se provou fatal, apesar do aparente sucesso inicial alemão.
Em 30 de setembro, Hitler personalizou a coisa, dizendo que a Alemanha nunca deixaria a cidade com o nome do inimigo. Em mais 15 dias, teria 90% da Stalingrado em ruínas sob seu controle, mas fracassou em ver a contraofensiva soviética. Ela apostou em cercar a cidade, atacando as mais fracas posições de aliados menos capazes do Reich alemão, como romenos, italianos e húngaros na retaguarda.
Quando percebeu a tragédia em curso, Paulus pediu para fazer uma retirada tática que poderia ter salvo suas forças. Hitler não só disse não como o promoveu de general a marechal-de-campo, em outras palavras exigindo vitória ou morte.
O resultado, celebrado por todos líderes sensatos no Ocidente até aqui, foi a destruição do 6º Exército e o fim do avanço nazista a leste. Haveria ainda muita violências pela frente, mas a guerra estava perdida para Berlim -o próprio Hitler colocaria Stalingrado como o marco fatal de seu regime no fim de 1944.