Regras do governo empurram a apostadores responsabilidade por vício em bets, alertam especialistas

(FOLHAPRESS) – O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) empurra a apostadores a responsabilidade de controlar o vício em apostas esportivas online ao incluir na regulamentação do mercado de bets uma série de regras sobre “jogo responsável” que dependem sobretudo de ações individuais.

 

Essa avaliação foi feita por especialistas em saúde mental ouvidos e observada na prática pela reportagem, que se inscreveu em 146 sites de apostas autorizados a operar até o fim do ano pelo Ministério da Fazenda. A nova legislação está prevista para entrar em vigor a partir de janeiro de 2025.

De acordo com a Fazenda, o normativo estabelece que o agente operador tem o dever de garantir que a prestação de serviço vai proteger a saúde mental e financeira dos apostadores e que, adicionalmente, as bets são obrigadas a ofertar meios de autocontrole aos apostadores.

A pasta vê a existência de uma regulação em si para o jogo responsável como relevante e diz que o cumprimento das obrigações será monitorado de forma contínua pela Secretaria de Prêmios e Apostas por meio do Sigap (Sistema de Gestão de Apostas).

Segundo relato de um membro do governo, o desenho da regulamentação levou em conta a experiência de outros países, como Inglaterra e Itália, que mostrou que a imposição de limites mais objetivos por parte do regulador, seja de tempo ou de volume financeiro, acaba gerando distorção no setor devido à diversidade do perfil etário e socioeconômico dos apostadores.

Conforme portaria publicada em 31 de julho, a empresa deve informar ao apostador, no momento do cadastro e do acesso ao sistema, os “riscos de dependência, de transtornos do jogo patológico e de perda dos valores das apostas”.

Também deve possibilitar que os apostadores adotem, entre outras medidas, limites por tempo transcorrido, perda financeira, valor depositado ou quantidade de apostas, façam períodos de pausas, solicitem “autoexclusão” (por prazo determinado ou em definitivo).

A norma diz ainda que deve estar disponível aos apostadores “de forma clara e acessível” o oferecimento de um questionário de autoavaliação sobre riscos associados às apostas, além da indicação de “sinais de alerta” para autovigilância quanto ao risco de dependência e de transtornos do jogo patológico.

Para Hermano Tavares, psiquiatra e coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico do Instituto de Psiquiatria da USP, a discussão sobre jogo responsável é baseada no que ele chama de “falácia” da decisão informada.

“Depois que o apostador foi avisado da improbabilidade do ganho financeiro, seguir jogando é responsabilidade exclusiva dele. Além de falso, isso não vai funcionar com quem já é compulsivo”, diz.

Entre as diretrizes do jogo responsável, consta que as empresas de apostas devem suspender o uso do sistema pelos apostadores “em risco alto de dependência e de transtornos do jogo patológico”, sem detalhar tais características.

A psiquiatra Carla Bicca vê como perfil de risco adultos que sejam impulsivos, que tenham dificuldade de identificar emoções ou que apresentem quadro depressivo, bipolaridade ou déficit de atenção. Enquadram-se também jovens com baixo controle parental.

A portaria fala que é dever das bets impedir cadastro ou uso do sistema de apostas de pessoas diagnosticadas com ludopatia por laudo de profissional de saúde mental habilitado.

Bicca destaca que o país tem ainda um número restrito de especialistas no assunto e que o SUS (Sistema Único de Saúde) não tem capacidade suficiente de atendimento diante da demanda crescente, ainda que seja a única opção da população de renda mais baixa.

Para a médica, ao menos metade do que será arrecadado pelo governo com as bets deveria ser redirecionado para a área da saúde. O montante, contudo, será muito inferior.

A legislação prevê que 88% serão destinados à cobertura de despesas de custeio do agente operador e 12%, redistribuídos a diversas áreas. Da fatia menor, 1% será direcionado para o Ministério da Saúde, para medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais decorrentes da prática de apostas.

“Essa portaria transparece a falta de cuidado com a saúde mental”, disse Bicca. “Por que criarmos a demanda antes de pensarmos na estrutura?”

Como mostrou a Folha, durante a elaboração das regras para o mercado de apostas, funcionários da Fazenda se reuniram com bets ou associações 251 vezes, enquanto profissionais da área da saúde foram ouvidos em cinco ocasiões.

Ao percorrer os sites de apostas autorizados a operar até o fim do ano, a reportagem observou que, após o cadastramento, em muitos casos abre-se diretamente a página de depósito, sem nenhuma verificação de identidade.

Tavares alerta também para a existência de mecanismos estimulantes nos sites de apostas, que geram o efeito “near miss” (sensação de que a vitória escapou “por pouco”). Como exemplo, cita resultados manipulados em caça-níquel eletrônico.

“Temos que discutir os componentes estruturais dos jogos e o que está lá para garantir jogabilidade e diversão e o que está lá para causar descontrole e compulsão”, diz.

A Folha constatou que diversos sites, apesar de declararem preocupação com o risco de dependência, têm mecanismos que estimulam o usuário a jogar. Uma prática comum é elevar o valor mínimo de depósito após algumas aplicações.

Outro mecanismo obriga o usuário a apostar qualquer valor depositado antes de permitir o saque do recurso. Se uma pessoa com dinheiro depositado na plataforma de apostas se arrepender, ela será obrigada a jogar para poder recuperar o valor.

Ao navegar nos sites de apostas, a reportagem também foi alvo de táticas de publicidade agressivas, com envio de emails, mensagens no telefone e até ligações oferecendo promoções. Muitos deles mantêm inclusive comunidades em aplicativos de mensagem onde essas ofertas são divulgadas.

A prática observada desrespeita as regras estabelecidas de que as bets devem oferecer aos apostadores, no momento do cadastro, a opção por aderir ou não ao recebimento de ações de comunicação, de publicidade e de marketing, e garantir que os usuários possam alterar sua preferência.

Nos bastidores, interlocutores do governo garantem que ajustes podem ser solicitados pela Fazenda se forem considerados insuficientes os mecanismos e critérios propostos pelos agentes operadores para garantir a saúde mental e financeira dos apostadores.

Dizem também que, em caso de descumprimento das regras, as empresas podem ser multadas, processadas administrativamente e até penalizadas com a perda da autorização de funcionamento.

Procurada, a ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loterias) diz defender a regulamentação do mercado para “mitigar efeitos nocivos”, como casos de ludopatia.

Segundo a entidade que representa empresas do setor, não interessa ao mercado ter ou manter jogadores compulsivos e o jogo “deve ter o único objetivo de entretenimento e de forma saudável, com equilíbrio e moderação.”

A associação diz ter firmado uma parceria com a health tech Somente para fornecer apoio psicológico a apostadores que identificarem que estão desenvolvendo compulsão.

“A iniciativa, feita de livre e espontânea vontade pela ANJL, demonstra o compromisso das suas associadas com um ambiente saudável para as apostas e jogos online no Brasil”, afirma a representante, acrescentando que analisa uma segunda frente de cooperação.

Leia Também: Previdência quer proibir uso de aposentadorias e pensões em bets

 

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