CLÁUDIA COLLUCCI
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Visão de curto prazo no planejamento em saúde, alta rotatividade dos cargos de liderança, grande fragmentação da gestão do sistema e pouca coordenação entre os setores público e privado são alguns dos fatores que têm gerado ineficiência na gestão do SUS e acentuado as desigualdades em saúde.
Ao mesmo tempo, o sistema sofre com a perda de financiamento causada pelas políticas de austeridade fiscal, com o aumento do gasto com emendas parlamentares, e com o crescimento das demandas judiciais que afeta negativamente o planejamento e a alocação orçamentária no SUS.
Essas são algumas das constatações de um relatório lançado na última quarta (21), na embaixada do Reino Unido, em Brasília, que levantou pontos fortes e fracos do sistema público brasileiro para avaliar a sustentabilidade e a resiliência durante a pandemia de Covid-19 e fez 42 recomendações de políticas públicas que podem ser implementadas.
Entre elas, está o aumento progressivo de recursos financeiros aplicados no SUS, de 4% para 6% do PIB em dez anos, e uma tributação adicional sobre produtos prejudiciais à saúde, como tabaco, álcool e açúcar. O relatório foi apresentado ao Ministério da Saúde e aos conselhos que representam os gestores estaduais e municipais da saúde.
O trabalho faz parte de uma iniciativa presente em mais de 30 países, fruto de uma colaboração entre a Escola de Economia de Londres, o Fórum Econômico Mundial, a Fundação da Organização Mundial da Saúde, e as empresas AstraZeneca, Phillips e KPMG.
No Brasil, primeiro país da América Latina a integrar o projeto, o estudo foi conduzido por pesquisadores da FGV-Saúde, envolveu análises de mais de cem documentos e discussões com mais de 20 especialistas, incluindo acadêmicos, representantes do governo, agências reguladoras e organizações públicas e privadas.
Segundo Adriano Massuda, professor da FGV e principal autor do estudo, o SUS tem condições de se tornar mais sustentável e resiliente se conseguir fortalecer a governança, melhorar o financiamento, alocar recursos em áreas de maior necessidade, fortalecer a atenção primária e a integração com os demais níveis do sistema, e criar uma rede de respostas a urgências e emergências.
Para ele, lições aprendidas na pandemia precisam ser sistematizadas e incorporadas ao sistema. “O país ainda não fez isso, e esse estudo é uma oportunidade para isso. Como foi a resposta à pandemia? O que deu e o que não certo?”
Massuda afirma que, embora haja um cansaço da população ao tema da Covid, as novas emergências em saúde pública são uma ameaça real e precisam ser enfrentadas. “É fundamental que o país tenha uma agenda convergente. E para isso você precisa ter os governos e a sociedade civil juntos.”
Para José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e que também participou da elaboração do documento, muitas das queixas ligadas à assistência não se limitam à falta de financiamento do SUS e podem ser enfrentadas.
“Hoje o paciente fica perdido na rede. Ele não sabe quanto tempo vai demorar para fazer um exame, ser encaminhado a um especialista ou a uma cirurgia. Não existe transparência. Isso passa por modelo de gestão, de capacitação, de disponibilidade de especialistas.”
Segundo ele, todos esses desafios inseridos em um contexto de envelhecimento populacional, aumento de doenças crônicas, sedentarismo, alimentação inadequada, entre outros, vão trazer impactos ainda mais severos ao SUS.
“Cuidar da saúde não depende só do Ministério da Saúde. Se você não olha para os determinantes sociais, os resultados sempre serão fragmentados.”
Massuda lembra que, embora a atual gestão do Ministério da Saúde ainda esteja debruçada na reconstrução de programas desmontados na gestão de Jair Bolsonaro (PL), como o Mais Médicos, e de outras tarefas da administração pública, algumas questões são urgentes.
Ele destaca, por exemplo, uma agenda para identificar e tratar as demandas represadas na pandemia, especialmente às relacionadas ao câncer e às doenças cardiovasculares, e uma mobilização para recuperar as altas taxas de cobertura vacinal.
“Tem que ter um engajamento do presidente da República, dos governadores, dos prefeitos e uma mobilização da sociedade civil para que haja um engajamento e a gente retome 95% de cobertura vacinal. Isso não pode esperar.”
Durante evento, várias falas destacaram a importância das parcerias público-privada, como as que surgiram durante a pandemia. “Elas mostram o potencial de colaboração entre o setores para aumentar a resiliência do sistema de saúde”, disse Alistair McGuire, líder dos departamentos de economia e políticas da saúde da Escola de Economia de Londres.
Para Olavo Corrêa, diretor-geral da AstraZeneca Brasil, as parcerias podem endereçar diversos pontos trazidos no relatório. “Mais do que desenvolver medicamentos que mudam vidas, a indústria de saúde tem trabalhado para buscar um sistema de saúde que seja mais sustentável e resiliente.”
Patricia Frossard, da Philips Brasil, destacou a necessidade de abordagens colaborativas e centradas nas pessoas e no uso de dados para melhorar os serviços.
Veja as principais recomendações do relatório em sete áreas:
Governança – Integrar informações de saúde disponíveis e bancos de dados de diferentes fontes, públicas e privadas, para fortalecer a resiliência do sistema de saúde por meio do monitoramento permanente de uma ampla gama de ameaças à saúde pública.
Financiamento – Estabelecer um aumento progressivo de recursos financeiros aplicados no SUS, de 4% para 6% do PIB em 10 anos, visando dar maior sustentabilidade ao sistema, incluindo considerar a tributação adicional sobre produtos prejudiciais à saúde (por exemplo, tabaco, álcool, açúcar etc)
Força de trabalho – Articular políticas de saúde e de educação para alinhar a formação técnica, graduação, residência e pós-graduação de acordo com as necessidades do sistema de saúde; desenvolver competências em saúde digital em toda a força de trabalho em saúde e expandir a tecnologia digital.
Medicamentos e tecnologia – Fortalecer as políticas de tecnologia em saúde e de desenvolvimento produtivo para garantir o acesso universal e maior competitividade da produção local, reduzindo a dependência externa e o elevado déficit da balança comercial em produtos de alto custo.
Prestação de serviços de saúde – Priorizar a atenção primária em saúde como a principal fonte de acesso para cuidados integrais, envolvendo prevenção, diagnóstico, tratamento e cuidados paliativos no SUS, além de sua integração com outros níveis de atenção, incluindo serviços de urgência e de saúde mental.
Saúde da População e determinantes sociais – Aprimorar a regulamentação de práticas comerciais que afetam a saúde, incluindo tabaco e álcool; fortalecer ações intersetoriais para abordar políticas que influenciam a saúde, como transporte, habitação, planejamento urbano, meio ambiente e educação
Sustentabilidade ambiental – Fomentar a participação do setor de saúde nas pautas ambientais, incluindo estratégias de fortalecimento do SUS na região amazônica, com protagonismo de comunidades locais; Estudar estratégias e se comprometer com a transição para fontes de energia verde no SUS.