SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após alegar, sem evidências, que a Ucrânia estaria por trás de um suposto ataque com drones ao Kremlin para assassinar o presidente Vladimir Putin na quarta (3), a Rússia voltou suas acusações aos EUA.
Em encontro regular com a imprensa nesta quinta-feira (4), o porta-voz do governo russo, Dmitri Peskov, afirmou, outra vez sem apresentar provas, que a Casa Branca “sem dúvidas” estava por trás do suposto atentado, acrescentando que “decisões sobre ações do tipo não são feitas em Kiev, mas em Washington”.
Os EUA refutaram as alegações horas depois. Em entrevista à imprensa americana, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional do país, John Kirby, disse que as acusações eram falsas e enfatizou que Washington não encoraja nem dá meios para que a Ucrânia realize ofensivas para além de suas fronteiras.
“Obviamente é uma alegação absurda. Nem sabemos exatamente o que aconteceu ali, mas posso garantir que os EUA não tiveram nenhum papel nisso. Peskov está mentindo”, afirmou Kirby à CNN. Mais tarde, em entrevista coletiva na Casa Branca, voltou a negar qualquer envolvimento de Washington, a chamar os russos de mentirosos, e, questionado acerca de uma possível retaliação russa, disse: “Não é como se Putin tivesse que inventar novas razões para matar ucranianos inocentes”.
No dia anterior, o líder do país invadido, Volodimir Zelenski, já havia negado o envolvimento ucraniano no episódio. “Lutamos em nosso território.” O suposto ataque deixou questões no ar -a maior delas, talvez, seria a de como um drone inimigo invadiu uma área tão bem protegida quanto a sede do governo russo.
A divulgação do caso pelo Kremlin, que colocou em seu site oficial uma nota de cinco parágrafos sobre a suposta ofensiva cerca de 12 horas após sua ocorrência, por volta das 2h30 do horário local (20h30 de Brasília), também levantou suspeitas. A mesma postura não foi adotada após o atentado a bomba que resultou na morte de Daria Dugina em agosto passado, por exemplo, ou depois da explosão da ponte que liga a Rússia à Crimeia, crucial para a linha de suprimento das tropas russas no país invadido, em outubro.
A própria admissão de um ataque nessa escala é pouco usual, de acordo com analistas militares -trataria-se, afinal, de uma grande falha das Forças Armadas russas, que desde antes do início da Guerra da Ucrânia se gabam de sua superioridade militar. O episódio gerou, assim, especulações acerca de o suposto incidente ser, na verdade, uma operação de “bandeira falsa”, isto é, quando um país simula um ataque contra si mesmo para iniciar uma guerra, retaliar rivais ou escalar uma situação.
A declaração de que “a Rússia se reserva o direito de tomar medidas de retaliação onde e quando considerar apropriado”, contida na nota do Kremlin, e uma declaração do ex-líder russo Dmitri Medvedev, de que o país não tem outra opção a não ser a “eliminação física de Zelenski”, reforçam essa tese.
Outra possibilidade, aventada pelo próprio Zelenski, é a ideia de que a Rússia encenou o ataque para unir sua população às vésperas do Dia da Vitória, que celebra o êxito dos Aliados contra a Alemanha nazista, comemorado neste ano na próxima terça-feira (9).
Essa também é a visão de um relatório publicado pelo Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês). O texto argumenta que “a Rússia provavelmente realizou o ataque numa tentativa de trazer a guerra para dentro de casa e assim estabelecer condições para uma mobilização social mais ampla”.
Por fim, alguns especialistas dizem crer que a Ucrânia tenha, sim, sido responsável pelo suposto ataque. Mas defendem que, se esse for o caso, a ação teria sido sobretudo simbólica, como uma declaração de que Moscou não está tão segura quanto se acredita, não uma tentativa real de assassinar Putin -que, como se sabe, usa sua residência oficial no prédio do Senado sobretudo para eventos oficiais e estava em sua casa em Novo-Ogariovo, nos arredores da capital, no momento do suposto incidente.
De todo modo, o episódio acirrou ainda mais as tensões envolvidas na guerra em um momento já marcado por uma escalada, causada pela expectativa de uma contraofensiva ucraniana iminente. Desde a semana passada, ataques aéreos têm sido cada vez mais frequentes -não só na Ucrânia como na Rússia.
Mais um tanque de petróleo amanheceu em chamas em Krasnodar, nesta quinta, após o que o Kremlin diz ter sido um ataque de drone. É o segundo caso do tipo na região, próxima à Crimeia, em menos de um dia.
A península, anexada por Putin na esteira da queda do governo pró-Moscou de Kiev em 2014, foi palco de um grande incêndio no fim de semana. A quantidade de incidentes em sequência é tal que a chancelaria russa afirmou em nota que enfrenta uma onda “sem precedentes” de “atividades terroristas e de sabotagem das Forças Armadas ucranianas” -Kiev não reivindicou a autoria de nenhum dos ataques.
Já no território invadido, ofensivas aéreas na madrugada atingiram Kiev e um campus universitário em Odessa, no Mar Negro. Os artefatos lançados em direção à cidade portuária traziam as inscrições “por Moscou” e “pelo Kremlin”, uma alusão a uma retaliação contra o suposto ataque à sede do governo russo.
O Exército ucraniano disse ter derrubado 18 dos 24 drones usados na ação. Bombardeios em Donetsk ainda danificaram uma usina elétrica, segundo o Ministério da Energia. Não houve registros de vítimas.
Enquanto isso, a cifra de mortos no ataque realizado a Kherson na véspera subiu para 23, de acordo com o governador regional, Oleksandr Prokudin. “Os alvos dos inimigos são os lugares onde moramos, nossas vidas, as vidas de nossos filhos”, disse ele em um vídeo postado nesta quinta, após um hipermercado, uma estação de trem e prédios residenciais serem atingidos. A Rússia sempre nega mirar alvos civis.
Zelenski, aliás, voltou a pedir a criação de um tribunal especial dedicado a julgar a atuação de Moscou na Guerra da Ucrânia ao discursar em Haia -sede do Tribunal Penal Internacional (TPI), na Holanda. “Vamos mostrar que essas pessoas não são intocáveis. Precisamos de Justiça”, disse o líder, que voou para o local após uma passagem pela Finlândia para uma cúpula com demais países nórdicos. Ele também se encontrou com o premiê Mark Rutte e com o rei holandês, Willem-Alexander.
Em março, o TPI emitiu um mandado de prisão para Putin, acusando-o de ser o responsável por crimes de guerra cometidos desde a invasão da Ucrânia. A corte argumenta que o russo há quase 25 anos no poder é o provável responsável pela deportação ilegal de crianças de áreas ocupadas pela Rússia no país vizinho ao seu e falhou em exercer controle adequado de seus subordinados civis e militares.
Apesar de simbólico -trata-se de uma ordem de detenção de um chefe de Estado, afinal-, o ato não tem efeitos práticos claros. Moscou não é signatário do Estatuto de Roma, fundador do TPI, o que significa que a corte não tem jurisdição sobre o país.