LUANA LISBOA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Rússia anunciou no último dia 14 que desenvolveu sua própria vacina contra o câncer. De acordo com o governo, o imunizante será distribuído gratuitamente a partir de 2025.
A vacina utiliza a tecnologia de RNAm (RNA mensageiro), a mesma usada nas vacinas contra Covid da Pfizer e da Moderna.
O imunizante russo é terapêutico, ou seja, voltado para tratamento, e não para prevenção do câncer.
De acordo com Moscou, a vacina foi desenvolvida em colaboração com vários centros de pesquisa. O diretor do Centro Nacional de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya, Alexander Gintsburg, disse à agência de notícias estatal Tass que os testes pré-clínicos mostraram que o imunizante suprime o desenvolvimento de tumores e potenciais metástases.
No mundo, diversos tipos de pesquisa estão em andamento para diferentes tratamentos de câncer com essa mesma ideia de estimular o sistema imunológico a identificar e combater células cancerígenas. Isso abrange tanto vacinas como moléculas que ativam o sistema de outras maneiras, diz o integrante do centro de oncologia do Hospital Sírio-Libanês, Diogo Assed Bastos.
O que ainda não existe, segundo ele, é uma terapia que consiga, com base na informação genética, efetivamente curar qualquer tipo de câncer. Por isso, o anúncio traz esperança, mas informações sobre a pesquisa que levaram ao desenvolvimento da molécula prometida ainda precisam ser amplamente divulgadas pelo governo russo.
“É necessário entender que tipo de molécula está sendo utilizada, como ela age de forma detalhada e, principalmente, quais foram os estudos clínicos realizados”, afirma Bastos. “Ela [pesquisa] deve ser publicada e apresentada em congressos científicos para que a comunidade científica possa avaliar e validar os dados.”
A oncologista clínica Maria Ignez Freitas, do Comitê de Tumores Gastrointestinais Alto da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), afirma que os achados devem ser confirmados antes de oferecidos em larga escala. “É bem provável que tenham estudos clínicos em andamento com o uso dessa tecnologia, mas o ideal seria entender como esse procedimento será realizado.”
A vacina, segundo informações iniciais, pode “ensinar” o sistema imunológico a reconhecer células cancerígenas. Para tumores hematológicos, isso já é utilizado.
“É uma abordagem tanto de vacina terapêutica como de vacina personalizada. O grande atrativo das vacinas de RNA mensageiro é que elas juntam a ideia de personalizada, mas também de produzir em massa”, diz Mariana Brait, gerente sênior de pesquisas do A.C.Camargo Câncer Center.
Nesses casos, o RNA mensageiro leva a informação do código genético para designar quais os aminoácidos e qual a sequência que devem compor as proteínas.
“Essa tecnologia permite a formação de proteínas de acordo com a necessidade desejada. Geralmente, o que se idealiza é identificar os neoantígenos tumorais [proteínas que podem ser reconhecidas pelo sistema imune], selecionar os mais promissores. A sequência de RNA mensageiro é injetada no paciente para gerar proteínas que estimulem o sistema imune e seja então formada uma resposta do sistema imunológico contra o tumor”, afirma Freitas.
Também integrante do centro de oncologia do Sírio-Libanês, Rodrigo Munhoz afirma que faltam informações para entender a magnitude do suposto ganho proporcionado pela vacina russa, em que contexto ela foi usada e qual a tecnologia empregada. “No Brasil, por exemplo, houve um estudo relacionado ao melanoma utilizando a técnica do RNA mensageiro, patrocinado pela Moderna e pela MSD”, cita.
Esse estudo foi feito com pacientes que tiveram melanoma e passaram por cirurgia -a ideia da vacina e da imunoterapia era reduzir o risco de recorrência do melanoma e de metástases. O estudo de fase 2 já foi publicado e apresentado em diversos eventos.
Os esforços são focados em vacinas personalizadas que codificam antígenos tumorais específicos, identificados por meio da análise genética dos tumores de cada paciente, afirma Carlos Henrique dos Anjos, médico oncologista e membro do comitê gestor do centro de oncologia do Sírio-Libanês.
Além de melanoma, a vacina de RNA mensageiro vem sendo investigada em carcinoma epidermoide de pele, câncer de pulmão e câncer de pâncreas, embora muitas dessas pesquisas ainda estejam em estágios iniciais ou intermediários.
Os resultados do estudo de fase 3 do melanoma são aguardados para confirmar a eficácia desses imunizantes.
Segundo Anjos, o que a Rússia diz ter conseguido com a sua vacina personalizada é possível, mas o sucesso da iniciativa depende de fatores como a identificação de antígenos específicos que sejam altamente imunogênicos, a capacidade do sistema imunológico do paciente de responder adequadamente e o controle de possíveis efeitos colaterais.
“No caso de uma vacina contra o câncer, que tem implicações clínicas significativas, a ausência de estudos revisados por pares levanta dúvidas sobre eficácia, segurança e viabilidade da proposta. Sem essa validação, as alegações feitas pelo governo ou por instituições envolvidas no desenvolvimento perdem credibilidade na comunidade científica internacional”, afirma.
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