IGOR GIELOWSÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morto aos 89 anos em Belo Horizonte, na segunda-feira passada (8), o embaixador brasileiro Sergio Duarte foi um dos mais renomados especialistas em desarmamento nuclear da história.
Em mais de 50 anos de serviço, focou seu trabalho no tema, tendo presidido a revisão de 2005 do Tratado de Não Proliferação Nuclear e sendo o alto representante da área na ONU de 2007 a 2012.
De 2017 até maio deste ano, esteve à frente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais, entidade internacional que recebeu o Nobel da Paz por seu trabalho pelo fim das armas de destruição em massa, em especial as nucleares.
Nos últimos anos, em conversas com a Folha e artigos para o jornal, ele sempre demonstrou sua ansiedade ante o desmantelamento do sistema de controles de armas. Defensor do Zero Nuclear, o fim da bomba, ele via no ocaso dos tratados que encerraram a Guerra Fria a entrada numa era muito mais perigosa.
Dois dias depois de sua morte, seus temores ganharam maior concretude. Durante a cúpula da Otan, a aliança criada em 1949 para conter os soviéticas e reinventada em 2022 para combater a Rússia de Vladimir Putin, os Estados Unidos informaram que voltarão a operar mísseis na Alemanha.
Sob as brumas do conflito ucraniano e da celeuma sobre a capacidade cognitiva de Joe Biden, o tema quase passou meio batido –coube a Rússia chamar a atenção para a iniciativa, com uma reação que causou mais barulho do que o anúncio em si.
Não é uma medida casual. Sem detalhar muito, os americanos disseram que vão instalar periodicamente, a partir de 2026, ao menos três classes de armamentos ofensivos: mísseis SM-6, hipersônicos e Tomahawk.
Os primeiros são modelos antiaéreos de longa distância, que estão sendo testados na versão ar-ar. Os segundos, que não existem no inventário americano, são estrelas da propaganda belicista de Putin, com uso frequente na Ucrânia.
Já os terceiros estavam no centro das preocupações de Moscou em 1987, quando foi assinado um dos acordos basilares do fim da Guerra Fria, o INF (sigla inglesa para Forças Nucleares de Alcance Intermediário).
O tratado sucedeu o risco de guerra de 1983. Entre os vários elementos que quase levaram o mundo ao conflito naquele ano estava a instalação de mísseis balísticos Pershing-2 na Europa pelos americanos, fazendo par ao soviético SS-20 na mira inversa.
No mesmo ano, entraram em operação os Tomahawk, modelos de cruzeiro que voam rente ao solo, fugindo de radares. Foram um dos primeiros alvos do INF, e sua versão com fins nucleares foi desmantelada na Europa, com o modelo convencional ganhando fama a partir da Guerra do Golfo de 1991.
Apesar de truques de lado a lado para ludibriá-los, tanto o INF quanto os programas Novo Start (que limitava o número de ogivas estratégicas dedicadas a dizimar o país rival) e Céus Abertos (de vigilância mútua autorizada) eram respeitados por Rússia e EUA até a chegada de Donald Trump ao poder em 2017.
O americano deixou o INF em 2019 e o Céus Abertos, em 2020. No primeiro caso, acusava Moscou de ter desenvolvido mísseis que o violavam, uma verdade recíproca, porque o tratado era obsoleto ante novas tecnologias de ambos os rivais. No segundo, não havia justificativa.
O problema, como enfatizava Duarte, era sair sem negociar algo novo. A obsessão de Trump era incluir a China no debate, dado o crescimento do arsenal de Pequim: está em 520 ogivas, ainda assim dez vezes menos do que os de Moscou e Washington. De quebra, baixou a barra de emprego ao adotar armas nucleares menos potentes.
Com a invasão da Ucrânia em 2022, o caldo entornou. Putin suspendeu a sua participação no Novo Start em 2023, embora tanto russos quanto americanos tenham até o momento mantido os termos na prática. O russo deixou também acordos de forças convencionais.
A sequência de ameaças atômicas da Rússia no conflito, revisando sua doutrina nuclear ao que tudo indica para facilitar o emprego de armas do tipo em campo de batalha, fizeram Joe Biden comprar o blefe de Putin –que sempre poderá alegar ter reagido.
Ninguém disse que os Tomahawk voltarão a ser equipados com ogivas nucleares, ainda que a Otan fale em ter mais bombas. Mas sua futura presença em solo alemão, ao lado de outros mísseis poderosos, levou o Kremlin a prometer uma reação militar análoga, ao estilo Guerra Fria.
Como se vê, todos têm sua parcela de culpa na escalada. O caso ficou tão sério que levou à segunda conversa em um mês entre o ministro da Defesa russo, Andrei Belousov, e seu homólogo americano, Lloyd Austin, nesta sexta (12). Antes, as duas pastas haviam passado mais de um ano sem se falar.
Nesta semana, Sergio Duarte deixou sua viúva, Maria de Lourdes, seus filhos Luciana e Carlos, secretário de África e Oriente Médio do Itamaraty, e dois netos. E um mundo mais distante de seu sonho de um futuro de paz, sem armas nucleares.