O total de pessoas em todo o mundo que tiveram que fazer deslocamentos forçados – seja por guerras, perseguições ou para fugir de violações de direitos humanos – era de 108,4 milhões ao final de 2022. Hoje, o número recorde supera os 110 milhões. Proporcionalmente, 1 em cada 74 pessoas foi obrigada a deixar seu lar, pelas razões como as citadas.
Os dados são do relatório Tendências Globais, divulgado hoje (14) pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e indicam que o número mais que dobrou na comparação com o cenário de 2013, quando 51 milhões de pessoas se encontravam nessa condição.
Da parcela registrada ao final do ano passado, a maioria era de deslocados internos (dentro do próprio país), 62,5 milhões. O relatório indica ainda que 5,7 milhões de pessoas nessa situação conseguiram retornar a suas casas, em 2022. O deslocamento interno é um fenômeno que ocorre em países como o Congo, por exemplo.
Outros agrupamentos que compuseram a conta do Acnur eram os 35,3 milhões de refugiados, os 5,4 milhões de solicitantes de asilo e, ainda, os 5,2 milhões de pessoas com necessidade de proteção internacional. Um conjunto de apenas três países concentra 67% dos refugiados: a Síria (6,5 milhões), o Afeganistão e a Venezuela (5,2 milhões cada).
Outro dado diz respeito à vulnerabilidade de crianças no contexto do deslocamento forçado. Elas representam 40% dos deslocados, embora sejam somente 30% da população mundial.
O relatório colabora para derrubar parte importante do imaginário sobre as vítimas de deslocamento forçado que, supostamente, iriam para países mais ricos. Conforme o levantamento, o que se constata é que 70% deixam suas caras e vão viver em países vizinhos ao de origem, sendo a Turquia, o Irã, a Colômbia e a Alemanha os principais países de destino. A maioria fixa residência em países de baixa e média renda.
“É um pouco um mito que a maioria dos refugiados vai para ocidente ou para o norte. A maioria fica na região de origem ou em países vizinhos”, observa o representante do Acnur no Brasil, Davide Torzilli.
O Acnur destaca nesta edição do relatório que o ano passado teve alta de 35% na quantidade de refugiados, na comparação com 2021. Cerca de 5 milhões de pessoas conseguiram status de refugiadas, em 2022, e, atualmente, 5,4 milhões ainda aguardam a decisão sobre o pedido de reconhecimento dessa condição. No ano passado, o número de pedidos do tipo aumentou 35% em relação ao ano anterior (2021), passando de 1,7 milhões para 2,6 milhões.
O representante da agência no Brasil atribui o crescimento a conflitos e guerras, além do impacto da abertura das fronteiras, depois da pandemia de covid-19, diz Torzilli, para quem é necessário que se pense em políticas públicas para os países que fazem as acolhidas.
O Acnur calcula ainda que 339,3 mil pessoas voltaram a seus países de origem em 2022 e, para cada pessoa que voltou, outras 22 se tornaram refugiadas. Atualmente, 1,5 milhão de pessoas refugiadas precisam ser reassentadas, o que indica que esse tipo de demanda sofreu um incremento de 99%, em relação a 2021.
A presidenta do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Sheila de Carvalho, defende que políticas públicas devem ser formuladas combinando fatores como acesso humanitário, segurança dos deslocados e ações de integração socioeconômica.
Segundo ela, o Brasil tem, atualmente, a maior fila da história de pedidos de reconhecimento da condição de refugiado. “Quase 100 mil já foram analisados, mas, a cada mês, ingressam outros 5 mil.”
Um dos aspectos que devem ser levados em conta, para Sheila, é a multiplicidade de perfis das pessoas em deslocamento forçado:
“A gente está falando de diferentes trajetórias, que podem, sim, contribuir para a formação e o desenvolvimento desse país. E a gente, ao não possibilitar esse acesso, está limitando nosso crescimento enquanto nação.”
Para a presidenta do Conare, os números em todo o mundo devem subir: “os números não vão se reduzir. A tendência é de que esses deslocamentos aumentem, de que os conflitos aumentem. Eu costumo brincar que a gente não sabe de onde vai vir esse fluxo, mas sabe que vai vir.”.
Dados do Perfil Socioeconômico dos Refugiados no Brasil, divulgado em 2019, pelo Acnur, em conjunto com a Universidade de Brasília e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello mostram que a maioria dos refugiados tem nível superior ou até chegou a cursar uma pós-graduação. Contudo, a dificuldade para revalidar seus diplomas universitários no país continua sendo um obstáculo para arranjar um emprego alinhado à sua área de formação e, consequentemente, ter um salário mais alto.
A moçambicana e ativista de direitos humanos Lara Lopes foi vítima desse gargalo que ainda exige atenção e providências do poder público. Ela chegou há 20 anos ao Brasil, em 2003, destino que escolhido depois de assistir a uma novela. Lara conta que enfrentou dificuldades para validar seu diploma de Tecnologia da Informação e teve que desistir disso, precisando completar um novo ciclo de formação. Após ter sua trajetória da universidade descartada, chegou a trabalhar como camareira, função abaixo de seu nível de ensino: “percebi que precisava estudar de novo. E estudei.”
“Infelizmente, nós refugiados encontramos certas dificuldades, por conta do estigma dessa palavra. As pessoas têm uma percepção bastante complexa em relação a isso, aos motivos que fazem com que as pessoas se tornem refugiadas. Nunca sofri preconceito pela minha orientação sexual, mas sim pelo motivo que me trouxe ao Brasil, por essa palavra. Por mais que você tente explicar, a pessoa se recusa a aceitar.”
Apesar de tudo, Lara comemora o fato de poder exercer livremente sua orientação sexual no Brasil, juntamente com outros conterrâneos do continente africano presentes na Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo, no final de semana passado. “Moçambique não tem uma lei que criminalize, mas também não tem políticas que protejam.”
Com a venezuelana Francis Salazar aconteceu praticamente o mesmo. Formada em direito e administração de empresas, ela trabalhou, inicialmente, como doméstica e em restaurantes no Brasil, onde chegou há cinco anos. Ela conta que assumiu o cargo de vigia e, após seis meses, foi promovida para secretária. Teve o desempenho reconhecido novamente, tornou-se a profissional responsável pela gestão de um prédio e hoje trabalha com accountability.
Mãe solo, Francis deixou dois filhos para trás, que agora estão aqui. Ela faz um apelo aos cidadãos de países que costumam receber refugiados para melhorarem sua percepção sobre eles, porque quem está nessa condição geralmente trabalha com uma disposição e dedicação fora do comum: “somos o suporte da casa, completo.”
Já Omid Ahmad Khalid é exceção, quando se pensa em aproveitamento de habilidades. Ele é refugiado do Afeganistão e buscou acolhimento no Brasil com sua esposa e seu filho há cerca de nove meses. O casal atua, hoje, como mediador cultural do Acnur. Omid é formado em administração de empresas e poliglota, dominando sete idiomas.
Essa não foi a primeira vez que Khalid teve que deixar seu país, por causa da guerra. Ele se recorda de que, quando era criança, teve que se mudar, com familiares, para o Irã. “A gente teve bastante problemas lá. Mas, aqui no Brasil, agora, não tem nenhum”, diz.