ITALO NOGUEIRA E BRUNA FANTTI
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro afirma não ter encontrado indícios de fraude nos registros de nascimento usados por dois supostos espiões russos para emitir documentos brasileiros e atuar no país.
De acordo com o órgão, responsável pela fiscalização dos cartórios, os livros e as folhas em que foram registrados os nascimentos de Gerhard Daniel Campos Wittich e Victor Muller Ferreira, nomes usados pelos supostos agentes, “estão intactos”. A Corregedoria, contudo, aponta fragilidades no registro de bebês à época em que se declarou o suposto nascimento dos dois.
“Cabe destacar que, à época dos nascimentos (1986 e 1989), os registros eram feitos de forma primordialmente declaratória na presença de testemunhas. Somente a partir de 1993 foi instituída a Declaração de Nascido Vivo emitida oficialmente pelas unidades de saúde”, diz a nota enviada à Folha de S.Paulo.
Ferreira é, na verdade, Serguei Tcherkasov, detido em abril do ano passado na Holanda e enviado ao Brasil, onde foi condenado por falsificação de documentos. Ele também é investigado sob suspeita de corrupção de uma agente cartorária para a obtenção dos papéis brasileiros.
Wittich foi apontado como um espião russo de sobrenome Chmirev por autoridades gregas. Ele se instalou no Brasil em 2016, quando emitiu uma identidade usando sua certidão de nascimento brasileira, e estabeleceu em 2018 uma empresa de impressão 3D que prestou serviços para as Forças Armadas entre 2020 e 2022.
A confecção de certidões de nascimento autênticas por meio de fraudes em cartórios é uma das suspeitas da Polícia Federal sobre como espiões se instalaram no Brasil. A facilidade em conseguir o registro no país e a boa receptividade do passaporte brasileiro no mundo são apontadas como possíveis motivos da escolha da Rússia para formar aqui seus agentes.
A Corregedoria do TJ-RJ, porém, afirma não ter identificado fraudes nos livros dos 4º e 6º Registros Civis de Pessoas Naturais da capital fluminense, onde os dois foram registrados. Em razão disso, o órgão levanta a possibilidade de que duas crianças com os nomes de Wittich e Ferreira de fato tenham nascido na década de 1980 e tiveram suas identidades utilizadas por outras pessoas.
“Os livros e as folhas estão intactos. Dois jovens casais teriam, portanto, comparecido aos cartórios com uma criança nascida há um dia, dentro do prazo legal, e fizeram a declaração”, diz o tribunal.
“A princípio, não se identificou fraude no registro. O que pode ter ocorrido possivelmente foi o uso posterior desse documento por pessoa diversa para obtenção de outros documentos e ocultação de verdadeira identidade.”
O posicionamento contraria familiares das mulheres apontadas como mães dos dois nos registros –ambas já estão mortas.
O eletricista Carlos Monteiro, irmão de Fátima Regina Campos Monteiro, apontada como mãe de Wittich, afirma à reportagem que a mulher nunca teve filhos, tendo convivido com ela no período em que supostamente deu à luz, em outubro de 1986, segundo a certidão de nascimento. A PF ouviu versão semelhante de parentes de Juraci Eliza Muller, apontada como mãe de Ferreira.
Os nascimentos são registrados em livros por ordem de chegada ao cartório. Fraudes costumam ocorrer por meio de inclusão ou adulteração de folhas para inserção de dados falsos sobre nascimentos –razão pela qual a Corregedoria ressalta que os documentos arquivados estão intactos.
O presidente da Arpen (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais), Gustavo Fiscarelli, afirma que a única possibilidade para que as duas versões sejam verdadeiras é um registro falso ter sido feito intencionalmente na década de 1980 para ser usado 30 anos depois. “Seria um planejamento muito grande. Mas tratando-se de espionagem russa, não se pode duvidar”, diz.
Fiscarelli afirma ter chamado a atenção em ambos os registros a ausência do número de documentos do pai e da mãe. “Mesmo naquela época, esse tipo de informação costumava constar nos registros.”
Outra possibilidade levantada por especialistas ouvidos pela reportagem é a troca do livro original por um adulterado, no qual o “nascimento falso” entraria no lugar de um verdadeiro. Fiscarelli, porém, avalia ser inviável esse tipo de fraude atualmente.
“Sempre que há identificação de possíveis fraudes ou qualquer indício de erro, é feita minuciosa apuração pela Corregedoria Geral da Justiça sobre as responsabilidades e a forma de ação, com o objetivo de corrigir e melhorar o sistema de registro”, afirma a nota da Corregedoria do TJ-RJ.
Além dos supostos espiões russos “cariocas”, a Noruega deteve Mikhail Mikhushin com documentos em nome de um brasileiro chamado José Assis Giammaria, registrado em Padre Bernardo (GO).
Ainda não está claro se em algum momento esses espiões miravam instituições no Brasil, mas os casos acenderam um alerta entre as autoridades. A Polícia Federal passou a investigar se o país tem sido usado de forma sistemática por nações como a Rússia para formar agentes ilegais de espionagem.