“Vale o custo”: a vida de pessoas que convivem com doenças raras

Cerca de 13 milhões de brasileiros convivem com algum tipo de doença rara, segundo dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), repositório de informações do Ministério da Saúde. A dificuldade no diagnóstico é um dos principais obstáculos para a rotina dessas pessoas que chegam a consultar até 10 médicos diferentes para chegar a um “veredito”. Nesta terça-feira (28) é celebrado o Dia Mundial das Doenças Raras e para alertar a sociedade sobre o assunto, a Radioagência Nacional conta histórias de pessoas que convivem com algumas dessas enfermidades incomuns.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), doenças raras são definidas pelo número reduzido de pessoas afetadas: 65 indivíduos a cada 100 mil pessoas. Cerca de 8 mil doenças já foram identificadas como raras no mundo. As enfermidades são caracterizadas por uma ampla diversidade de sinais e sintomas, que variam de conforme a doença, assim como de pessoa afetada pela mesma condição.

Para 95% das doenças não há tratamento, restando somente os cuidados paliativos e serviços de reabilitação. Apesar do conjunto de informações disponíveis no repositório do Ministério, a própria pasta sofre de um “apagão de dados”. O setor foi reestruturado pela gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e há previsão de uma coordenação para cuidar do tema, mas ainda não há responsável nomeado. Questionada pela reportagem da Radioagência Nacional, a pasta não soube informar quantas pessoas com doenças raras são atendidas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ana Braga tem narcolepsia, uma doença que a faz apagar do nada, no meio da rua, entre amigos, durante uma festa bem agitada ou até “no meio do bem bom”, como ela faz questão de dizer. Segundo ela, ser narcoléptica significa também ser julgada por quem não entende a condição.

“Quando a gente tem um diagnóstico de alguma coisa que, de alguma doença que desacreditam a gente o tempo todo, é um misto de alívio, né? De alívio, uma alegria momentânea. Eu não estou inventando nunca, eu não estou inventando. Eu não sou preguiçosa, porque o sono tem isso, essa associação à preguiça, à malandragem, à pessoa que não quer nada com a vida, mas ao mesmo tempo vem: e agora?”, disse a servidora pública aposentada.

Hipersonia idiopática é sono diurno excessivo com ou sem aumento das horas de sono noturno. Em geral, os pacientes com a doença têm dificuldade para acordar e, quando acordam, experimentam um período de inércia do sono caracterizado por sonolência, diminuição da cognição e comprometimento motor. Braga fundou a Associação Brasileira de Narcolepsia e Hipersônia Idiopática (ABRANHI) para ajudar pessoas que tiveram ou terão diagnósticos parecidos.

“Desde o dia que leram no meu laudo, narcolepsia, nunca mais eu coloquei o pé dentro do meu serviço, o serviço público federal. O tempo que eu era vista como uma pessoa, uma funcionária preguiçosa, que dormia, que faltava e tudo mais, eu poderia estar entre as pessoas, eu poderia estar incluída. Eu poderia parar e dormir no meio do serviço, eu só não poderia parar e dormir no meio do meu serviço com o diagnóstico de doença rara chamada narcolepsia”, contou.

Ana foi aposentada compulsoriamente do serviço público e argumenta que poderia ter continuado a atividade se houvesse informação sobre sua condição.

“Um cochilo programado resolve isso quando a pessoa tá medicada, o sono controlado, você dorme e acorda zero bala”, contou. “Sim, eu fui aposentada por conta da narcolepsia. Eu não tive chances, eu não tive a menor chance de eu ser vista. Então, eu já fui pra licença e aquela licença sem volta”, acrescentou.

A bióloga Adriana Santiago tem uma filha que foi diagnosticada com insuficiência adrenal primária, conhecida como doença de Addison. A condição provoca alterações nos níveis de cortisol, um hormônio considerado medidor de estresse.

O aumento do cortisol no organismo pode indicar o nível de agitação de uma pessoa, mas quem tem a doença de Addison apresenta dificuldade de produção do cortisol e, em caso de um estresse mais forte, as consequências podem ser fatais. Entre os sintomas, está a perda excessiva de sódio e potássio, o que pode leva ao coma e à morte.

“Eu levava na pediatra que a acompanhava. Ela falava que era a manha da minha filha, que era a dor do crescimento. Chegaram até a pensar que era uma crise de apendicite, mas nada. Eu fui chamada de neurótica”, lembra. “Foram três anos para descobrir o que realmente a minha filha tinha. A cada dia ela ia se definhando na minha frente, ia se desaparecendo. Todos os dias, vários episódios de vômito. Tinha que levar ela para o hospital para botar no soro. Ficava dois, três dias bem, depois voltava tudo novamente”, completa.

Por ser uma doença que se manifesta, normalmente, após os 30 anos, os médicos descartavam prontamente a hipótese. Adriana conta que uma médica protagonizou uma das cenas mais sádicas que lembra ter vivido.

“[A médica] começou a rir e chamou a secretária. Falou: ‘olha só o que essa mãe está falando” e começaram a rir aquelas gargalhadas. [Em seguida], abriu um livro na minha frente e começou a ler sobre doença de Addison. A doença de Addison, geralmente, é a partir dos 30 anos, mas tem casos fora da curva e a minha filha era um caso fora da curva”, disse.

A medicação usada no tratamento da doença é fabricada no Brasil ao custo de aproximadamente R$ 31 centavos, por cápsula. No entanto, as pessoas com doença no sistema adrenal têm sofrido com a escassez do remédio no país.

“Aqui no Brasil, não tem a fabricação da hidrocortisona. O único lugar que está fabricando é o Hospital das Clínicas em São Paulo. Inicialmente era só para os pacientes deles. Depois eles abriram para mais gente, mas eles não têm condições de absorver o Brasil inteiro. E pasmem, essa medicação é muito barata”, descreveu.

A filha de Adriana, Letícia Santiago, é aluna de medicina e se tornou uma voz ativa sobre o assunto na universidade após um episódio desagradável com os colegas de curso.

“Em um trabalho na disciplina de genética, disseram que foi uma doença rara e perguntaram se devia ser incluso ou não no teste do pezinho. Eu que estava escrevendo o que eles ditavam e chegou numa parte que eles falaram que ‘não valia o custo’ de aquela doença ser inclusa no teste do pezinho por ser uma doença rara. E eu tive que escrever aquilo, que ficou na minha mente: ‘como assim não vale o custo? Porque é uma vida, né? São pessoas'”, descreveu. 

Segundo o Instituto Vidas Raras, aproximadamente 72% por cento das doenças raras são de origem genética. O teste do pezinho pode reduzir a dificuldade obtenção do diagnóstico correto – e, assim, melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

Kaliny Trevezani é médica pediatra e sua profissão não evitou que passasse por uma peregrinação até descobrir que tinha Síndrome de Ehlers-Danlos (SED), enfermidade com 14 tipos diagnosticados e todos associados a condições genéticas.

“Como paciente, foi uma trajetória difícil (…) fazer o diagnóstico, a investigação, tudo isso foi um processo demorado. O fato de eu ser médica não teve interferências nesse processo, eu passei por 17 médicos até conseguir encontrar o meu diagnóstico”, contou.

Um dos sintomas mais prevalentes na SED é a fadiga e um dos mais incapacitantes. A condição, no entanto, tem uma série de sintomas que tornam o diagnóstico um grande quebra-cabeça de mil peças. Entre eles, estão a hipermobilidade das articulações, formação anormal de cicatrizes, ferimentos cicatrizantes, vasculatura frágil e pele lisa hiperextensível. A pele pode ser esticada vários centímetros, mas volta ao normal quando liberada.

“Você primeiro tem essa dor, cansaço, fadiga, depressão, ansiedade, que é o que geralmente a gente acaba inicialmente pensando para os pacientes, quando a maioria deles acabam sendo acompanhados, tratados por psiquiatra. Mas a gente tem o sistema gastrointestinal acometido, tem problemas de pele, problemas oculares. Enfim, acabam indo à diversas especialidades que não se conversam”, apontou.

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