(FOLHAPRESS) – Entre as muitas questões levantadas pela Guerra da Ucrânia na Rússia, envolvendo notadamente o nacionalismo, outro debate antigo voltou a crescer: o do antissemitismo. Uma das formas pelas quais ele ganhou corpo pode ser medida pelo fluxo de judeus que deixaram o país e a ditadura aliada da Belarus: no ano passado, quase 40 mil deles partiram em direção a Israel, segundo a Agência Judaica.
Em 2021, dos 27 mil imigrantes que a nação do Oriente Médio recebeu, 28% eram da Rússia, a maior fatia -e 11%, da Ucrânia. “Há uma concepção histórica de que, sempre quando as coisas não vão bem em Moscou, a situação fica perigosa para os judeus”, diz Anna Shternshis, especialista na cultura judaica russa e professora da Universidade de Toronto.
Pinchas Goldschmidt, rabino-chefe na capital russa desde 1993, por exemplo, deixou o país com a família duas semanas após o início da guerra. “Vemos o aumento do antissemitismo enquanto a Rússia volta a um novo tipo de União Soviética. Por isso acredito que a melhor opção para os judeus russos seja partir”, disse ele, no final de dezembro, ao jornal britânico The Guardian.
Perseguições são relatadas desde os tempos do império. No final do século 19, o assassinato do czar Aleksandr 2º e outros crimes foram falsamente atribuídos à comunidade judaica, o que motivou casos de revanchismo e morte de judeus -também na área da atual Ucrânia. Mais tarde, na União Soviética, o regime comunista fechou sinagogas, prendeu judeus e negou a emigração de vários deles para Israel.
Com o fim da URSS, o antissemitismo em certa medida refluiu, a ponto de, em 2000, o então recém-eleito Vladimir Putin participar de celebrações do feriado de Hanukkah. Ainda assim, pesquisa recente do instituto independente Levada mostrou que só 13% dos russos dizem aceitar um judeu na família e 7%, entre os colegas.
No começo da guerra, há quase um ano, uma série de episódios envolvendo a religião judaica ajudou a pautar o conflito, resultando ora em incidentes diplomáticos, ora em meios de forjar alianças geopolíticas -de Moscou citando a suposta “desnazificação” do Estado ucraniano como justificativa da invasão ao chanceler Serguei Lavrov fantasiando sobre uma origem judaica de Adolf Hitler para explicar como um país governado por um judeu, no caso Volodimir Zelenski, poderia ser nazista.
Nos últimos meses, o cerco antissemita na Rússia se voltou contra a Agência Judaica. A Justiça acusou o órgão, que auxilia a imigração para Israel em cerca de 70 países, de violar leis de privacidade ao recolher dados de cidadãos sem a autorização do Kremlin -a Procuradoria pede o fechamento da organização.
Em dezembro, um tribunal de Moscou adiou a audiência sobre o caso. Dois meses antes, o mesmo havia acontecido, com o prédio da corte tendo que ser esvaziado sob ameaça de explosões -não há evidências de que a possível intimidação estivesse associada ao processo.
Analistas consideram baixo, porém, o risco de a agência ser fechada em breve. Aliado dos EUA, Israel tem mantido certa neutralidade no conflito -mesmo que, desde que o início dele, já tenham ocupado o posto de premiê o direitista Naftali Bennett, o centrista Yair Lapid e o ultradireitista Binyamin Netanyahu, que assumiu na virada do ano e já conversou tanto com Putin como com Zelenski.
A Rússia tem hoje uma população estimada de 150 mil judeus, mas Tel Aviv contabiliza 600 mil russos elegíveis para a cidadania israelense, segundo a visão que considera judias as pessoas convertidas ou cuja mãe é adepta da religião.
Para Daniel Douek, diretor do Instituto Brasil-Israel, o conservadorismo russo defendido pelo Kremlin contribui para o isolamento da comunidade. “A ascensão do judaísmo na modernidade, assim como o das mulheres, da comunidade LGBTQIA+ e dos negros, gera resistência do tradicionalismo cristão.”
Segundo Shternshis, a maioria dos judeus que saíram da Rússia e da Belarus nos últimos meses integra a classe média-alta urbana, com conexões fora do país. “Alguns estão se mudando para Israel, mas há outros indo aos EUA ou a ex-repúblicas soviéticas. Quanto mais dinheiro têm, mais longe podem ir”, diz.
Em Israel, país com custo de vida mais elevado que o da Rússia de hoje, a jornalista Olga Bakushinskaia, 56, criou um grupo (“Recém-chegados, sejam bem-vindos”) que ajuda os que chegam a, por exemplo, encontrar emprego e educação, alugar uma casa e lidar com a burocracia estatal.
Mais de 20 mil pessoas foram acolhidas –entre elas, judeus ucranianos- por Bakushinskaia, que já passou por essa situação: ela conta que deixou a Rússia em 2014, sentindo-se perseguida após a anexação da Crimeia. “Israel não é o país mais fácil para emigrar, mas é a oportunidade que temos.”