(FOLHAPRESS) – A reforma na casa onde José do Nascimento de Jesus morava havia mais de 30 anos durou meses. Quando enfim achou que tudo estava resolvido, Zezinho, como é conhecido, lembra de ter comentado à esposa Irene: “Se Deus quiser, agora não vamos precisar mexer em mais nada”.
Era outubro de 2015. “Mas não deu 30 dias e a lama levou tudo embora”, afirma ele, que aos 70 anos perdeu amigos, casa e todos os pertences com o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), naquele que é considerado o maior desastre ambiental da história do país.
Bento Rodrigues, o distrito onde Zezinho morava e onde ficava a casa recém-reformada por ele, foi o primeiro a ser engolido pelos mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração da Samarco, joint-venture formada por Vale e BHP Billiton, que operava a barragem.
A lama percorreu 663 quilômetros, atingindo municípios de Minas Gerais e Espírito Santo, antes de chegar ao oceano. Dezenove pessoas morreram na tragédia.
Era o início de uma história de luto e espera por reparação que já dura sete anos.
Agora, parte das famílias afetadas pela tragédia começa a ser chamada a “voltar” -não ao distrito original, tomado por lama, mato e ruínas, mas a uma tentativa de reconstruí-lo a 11 km de distância.
Segundo a Fundação Renova, criada para ações de reparação, ao menos 84 casas de 196 previstas estão prontas e poderão ser ocupadas a partir de janeiro. Outras 70 estão em construção. As demais estão na Justiça ou aguardam projetos e início das obras.
A Folha visitou o novo Bento no último dia 19 e viu trânsito intenso de caminhões e tratores. Em algumas ruas, a maior parte já pavimentada, há maior número de casas construídas. Em outras, fileiras de caçambas e forte movimento de trabalhadores dividem o espaço.
Nos últimos anos, o atraso na entrega do reassentamento já vinha sendo alvo de questionamentos na Justiça. O prazo chegou a ser fixado em fevereiro de 2021, sob pena de multa de R$ 1 milhão por dia. Agora, a Renova recorre da data e do valor e evita falar em limite para conclusão.
A casa de Zezinho, por exemplo, é uma das consideradas quase prontas -o que ele contesta.
“Na maioria das casas não estão cumprindo o projeto”, diz. “Enquanto minha casa não estiver do meu jeito, não mudo.”
A reportagem pediu autorização da Renova para visitar o espaço com o futuro morador, mas o acesso dele não foi liberado. A fundação diz que as visitas de famílias precisam ser programadas com antecedência e seguem protocolos de segurança. A reportagem havia solicitado a autorização um dia antes.
As críticas de Zezinho são compartilhadas por outras famílias. “Na nossa casa tem muita coisa diferente do projeto acordado. Como atrasou, muito material saiu de padrão, e modificaram sem nos consultar”, reclama o pedreiro Antônio dos Santos, 39, cuja família pretende agora questionar a Renova antes de decidir sobre a mudança.
Outros, porém, já contam os dias para a ida ao novo distrito. A família de Andreia Sales, 47, é uma das que já se organizam para isso. Expulsos do Bento que amavam, os pais dela passaram os últimos sete anos em um imóvel temporário alugado dentro da cidade de Mariana.
A espera pela nova casa os angustia desde então. “Lá no Bento, meu pai tinha um bar e uma horta, onde plantava pimenta-biquinho. Em Mariana, não tem nada disso. É por essas coisas que ele está contando os dias para voltar”, relata ela, segundo quem a saúde do pai, de 78 anos, e a solidão da vida na cidade foram determinantes para a decisão de mudar em janeiro.
“Queremos reencontrar aquele elo de antigamente. Aqui ninguém consegue ver ninguém mais. Antes vivia um na porta do outro”, conta.
Um dos desafios no novo distrito, no entanto, será a adaptação diante da diferença de Bento Rodrigues original, que tinha forte característica rural.
Lá, por exemplo, o fogão a lenha era o centro das casas. Nas construções do novo Bento, a Renova optou por colocar fogões pré-moldados. “É um fogão que não aguenta o dia a dia como era o costume em Bento”, diz Mônica dos Santos, 37, que faz parte da comissão que representa atingidos e questiona esse e outros problemas na Justiça.
O cenário de canteiro de obras também preocupa a Cáritas MG, organização que presta assessoria técnica às famílias. “Há alto contingente de trabalhadores no local, e o trânsito de veículos e maquinário pode vir a ocasionar acidentes”, afirma Laís Jabace, coordenadora técnica do grupo.
O acesso a serviços como posto de saúde e escola são outros pontos de incerteza. Hoje, essas estruturas já estão prontas, mas ainda sem confirmação de quando vão funcionar.
Outra dúvida é sobre a adaptação das famílias que exerciam atividades rurais, como plantação de legumes e verduras. Segundo Jabace, não há garantia de fornecimento de água bruta para produção agrícola. Em alguns casos, o espaço para isso também deve ser menor.
“O reassentamento hoje é uma cidade cenográfica. Parece muito bonito, mas não condiz com a vida das pessoas”, diz o comerciante Mauro da Silva, 53, um dos atingidos cuja obra está travada na etapa de projeto, em meio a discussões na Justiça.
O diretor-presidente da Renova, André de Freitas, diz que o reassentamento passou por adequações por diferenças de terreno, mas que a fundação buscou preservar características como nome de ruas, vizinhança e distância das igrejas, por exemplo.
Ele atribui a diferença nas construções à decisão dos futuros moradores. “A grande maioria das casas é diferente das originárias. Mas essa é uma decisão da família.”
Freitas aponta ainda que a ausência de fogão a lenha ocorreu por normas de construção atuais. Segundo ele, a fundação vai repassar um valor em dinheiro para famílias “elegíveis” que quiserem fazer o fogão. A obra, porém, caberá aos moradores.
Sobre as preocupações de segurança, ele diz que a fundação vai adotar ações para minimizar incômodos das obras, como mudanças no fluxo de veículos pesados, limpeza nas ruas e suspensão das obras em período noturno e aos domingos.
A fundação não dá previsão de conclusão das obras e atribui a demora a casos na Justiça e à participação das famílias nas definições. “O processo não foi desenhado com o fator tempo como prioridade.”
Mônica, da comissão de atingidos, contesta que o prazo não seja prioridade. “São sete anos fora de casa, e o que a gente mais quer é entrar e dizer: essa casa é minha. O problema é que não falam que para isso é preciso ir para um canteiro de obras com 3.000 homens trabalhando.”